Scroll

Selo festa:

sonho consumado

70 anos depois

De “Canção do Amor de Demais”, de Elizeth Cardoso, a poemas de Drummond lidos por ele próprio, acervo da pioneira gravadora independente ganha o streaming, assegurando o desejo do seu criador: que toda essa arte fosse eterna

por_Alessandro Soler de_Berlim

De “Canção do Amor de Demais”, de Elizeth Cardoso, a poemas de Drummond lidos por ele próprio, acervo da pioneira gravadora independente ganha o streaming, assegurando o desejo do seu criador: que toda essa arte fosse eterna

por_Alessandro Soler de_Berlim

Os anos 1950 deram ao Rio de Janeiro sua belle époque cultural: uma profusão de músicos, compositores, pintores, escultores, poetas, dramaturgos e outros criadores convergiram na cidade, transformando-a num importante epicentro da produção artística brasileira. Nada mais lógico que um visionário quisesse captar todo aquele espírito criativo e guardá-lo num suporte permanente.

O visionário era o jornalista e crítico literário Irineu Garcia, e o suporte foram os 109 LPs que ele lançou em sequência pelo seu próprio selo, o Festa, ao longo de duas décadas.

null
Arquivo pessoal

Irineu Garcia, jornalista criador do Festa, nos anos 1950: reunião ecumênica de várias artes

De “Canção do Amor Demais”, o mítico álbum de Elizeth Cardoso precursor da bossa nova, a poemas de Cecilia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira lidos pelos próprios, passando por concertos de Camargo Guarnieri e Francisco Mignone e peças de teatro inteiras (como “Do Tamanho de Um Defunto”, escrita por Millôr Fernandes), é amplíssimo e de surpreendente qualidade o acervo do Festa.

Em 2023, este pioneiro selo independente brasileiro completa 70 anos desde o seu primeiro lançamento. E ganha uma homenagem pelas mãos da sua cessionária, Anete Rubin, advogada especialista em direito autoral e filha de Mignone. Num trabalho minucioso, ela cuidou da pesquisa, da remasterização e da digitalização do material do Festa e o subiu às plataformas digitais. Consuma, assim, o sonho de Garcia: na rede, tudo aquilo não só ganha difusão renovada, mas assegura-se seu caráter eterno.

“Contatei a sobrinha do Irineu, a Gracita Garcia, única herdeira dele, para liberar uns discos do meu pai. Quando vi o que ela tinha em mãos, propus recuperar todo o acervo e colocar nas lojas digitais”, lembra Anete.

Negócio fechado, veio a primeira etapa: reunir o que Gracita tinha em casa, ou seja, quase três dezenas de discos, além das fitas de estúdio e de quase 170 fitas em formato DAT. Todos os demais deveriam vir de outras fontes, sobretudo sites de colecionadores, no Brasil e no exterior, e plataformas como Mercado Livre.

Com tão poucas fontes originais às quais recorrer, Anete enfrentou problemas de identificação em alguns álbuns. Sobretudo a omissão a titulares participantes das faixas, mas também alguns casos em que não tinha sequer o nome de uma obra a digitalizar. Nessas horas, nada como vir de uma família de artistas.

“Como meus pais são músicos, tenho musicistas e pessoas mais velhas que se lembravam de algum repertório. O trabalho de pesquisa de autores e identificação de repertório foi todo feito por mim. Não se teria dinheiro para contratar uma pessoa que fizesse isso”, explica Anete, que aproveitou todo o processo de apuração para criar o label copy dos álbuns, com o máximo de dados possível da ficha técnica e os metadados de identificação reunidos.

As gravações originais ainda existem, mas Anete não dispõe do antigo gravador Studer para lê-las, de modo que não era uma opção a remasterização através desse método. Foi a partir das bolachas que se deu o processo de recuperação e digitalização.

“Como, por hobby, estudei engenharia de áudio, eu mesma realizei a remasterização, durante a pandemia”, orgulha-se Anete. “E ainda cadastrei os ISRCs de todo o material, que não existiam, alcançando a marca de pouco mais de 1.200 fonogramas.”

Depois, ela contatou uma distribuidora digital — a ONErpm —, que criou uma playlist do Selo Festa no Spotify e começou a subir tudo à plataforma, tantos as canções, os concertos e os poemas como as incríveis capas criadas por nomes da talha de Candido Portinari. Na mistura de artes que marcou o Festa — com 50% do catálogo literários; 35% de música clássica; e 15% de música popular, nas contas de Anete —, havia espaço para o belo em todas as suas formas, viesse de onde viesse.

“Toda essa gente era frequentadora da Casa Villarino, no Centro do Rio. Ali se celebraram os acordos entre o Irineu e os artistas. Não houve contratos, existia a palavra. Ele convidava, a pessoa ia lá no estúdio (na Avenida Franklin Roosevelt, também no Centro do Rio), gravava, e eles lançavam. Não era um homem da indústria. Ele tinha o sonho das boas gravações”, define a cessionária.

A boa-vontade dos herdeiros dessas pessoas, que permitiram o relançamento, foi essencial. Com a ajuda de Maria Creuza Meza, profissional com décadas de experiência na indústria fonográfica, e da radialista Adriana Scapin, buscou-se a liberação dos herdeiros de todos os titulares. A maioria fez a cessão sem cobrança, outros pediram valores baixos e em condições padrão na indústria. Só uns poucos não toparam ou pediram cifras que a cessionária considerou além das suas possibilidades.

TODA ESSA GENTE ERA FREQUENTADORA DA CASA VILLARINO, NO RIO. ALI SE CELEBRAVAM OS ACORDOS ENTRE IRINEU E OS ARTISTAS.

Anete Rubin, cessionária do Selo Festa

“Tudo foi feito de próprio bolso e sem ânimo de lucro. Não vai dar dinheiro. O que se quis mesmo foi registrar esse material fantástico para as próximas gerações”, diz Anete, que não pensa num lançamento físico agora mesmo, mas não o descarta no futuro: “Se alguém se interessar e quiser patrocinar, por que não?”

Só a uma coisa ela parece estar fechada: à ideia de lançar novos artistas e discos com a marca do Selo Festa.

“Aquilo tem a alma do Irineu, foi escolha artística toda dele e faz parte de uma época muito única. Não seria interessante nem pertinente o selo existir com novos nomes e obras. O Festa é e será sempre uma expressão do seu tempo.”

Next
Next