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JOÃO

GOMES,

tradutor do

novo sertão

Dos vídeos caseiros no TikTok às milhões de visualizações e audições no YouTube e no Spotify, astro do piseiro brilha ao reverenciar sua cultura vaqueira ancestral

por_Michelle de Assumpção do_Recife*

Dos vídeos caseiros no TikTok às milhões de visualizações e audições no YouTube e no Spotify, astro do piseiro brilha ao reverenciar sua cultura vaqueira ancestral

por_Michelle de Assumpção do_Recife*

Para entender a força e o carisma do cantor e compositor João Gomes - um fenômeno do piseiro e do forró com só 20 anos que explodiu no TikTok, acumula 1,6 bilhão de visualizações no YouTube e mais de 6 milhões de audições mensais no Spotify -, é preciso adentrar o Nordeste atrás de uma tradição tão especial como pouco difundida. Uma manifestação cultural ancestral que movimenta uma cadeia de trabalhadores rurais, do vaqueiro ao cantador. Trata-se das pegas de boi, origem das famosas vaquejadas.

A pega de boi é uma atividade que remonta aos primeiros tempos da ocupação do Sertão nordestino pelos colonos europeus. Diferentemente da vaquejada, que ocorre em espaço delimitado, a pega acontece dentro da caatinga, com os vaqueiros montados em cavalos velozes, que correm mata adentro atrás do boi. Para se não se cortar nos espinhos, o gibão é a peça principal, que cobre do pescoço à cintura. Tem ainda o guarda-peito, a perneira e o tradicional chapéu de couro, que protege não apenas do sol, mas também nos casos de acidentes. O final da disputa, que coroa o vaqueiro mais valente, é embalado por muita música. E se, antes, predominava o forró tradicional, atualmente também os chamados sertanejos de todas vertentes, como o piseiro, marcam presença nas pegas de boi.

Nascido em Serrita, no Sertão do Araripe de Pernambuco, em 31 de julho de 2002, filho de um barbeiro (com quem aprendeu a arte de ouvir e observar) e de uma agricultora, João Fernando Gomes Valério herdou a carga simbólica e afetiva da tradição sertaneja das pegas. Fernando, seu segundo nome, é uma homenagem a um tio vaqueiro. Repassar o nome de um vaqueiro a um outro parente que nasce é uma forma de transmitir a coragem, a valentia e a destreza que caracterizavam aquele que partiu.

Serrita é a terra onde viveu e trabalhou o notável vaqueiro Raimundo Jacó, primo de Luiz Gonzaga. Após ter sido assassinado de forma covarde (e impunemente), ele recebeu do rei do Baião uma homenagem na forma de uma das mais belas músicas do seu cancioneiro, “A Morte do Vaqueiro”, que se tornaria um verdadeiro hino do povo sertanejo. Anos depois, Serrita passou a abrigar a tradicional Missa do Vaqueiro, criada pelo padre João Câncio, por Luiz Gonzaga e pelo poeta Pedro Bandeira. A celebração reverencia a memória de Jacó, ao mesmo tempo em que chama atenção para as lutas dos sertanejos diante da seca, da fome e das diferenças sociais.

O rapaz sempre sentiu muito orgulho do nome, e a forma que encontrou de honrar a história de seus antepassados foi através da música, que chegou desde muito cedo a sua vida. Quando se transformou em escolha profissional, aconteceu em forma de sucesso estrondoso. Não que ele esperasse por isso.

“Nunca imaginei que seria tão abençoado, que meus sonhos se concretizariam e que a minha música teria um alcance desse tamanho e chegaria a tantos lugares e a tantos corações. Ao longo desse pouco tempo de estrada, já realizei muitos sonhos e encontros com ídolos e ganhei amigos queridos na música”, celebra.

UMA NOITE DE FESTA QUE MUDOU TUDO

Quando, aos 7 anos, foi morar em outra cidade, a também sertaneja Petrolina, já estava plantada nele a semente do vaqueiro como homem simples, de boa índole, forte, valente e seguro do que quer. João poderia ter trabalhado com o plantio na terra, assim como fizeram seu avô (que também participou de pegas de boi no mato) e sua mãe. Mas a história que estava escrita para ele era outra. Em Petrolina, chegou a fazer parte do coral da igreja e escrevia poesia no papel, estimulado pelas aulas de português. Adolescente, escolheu fazer o curso técnico em agropecuária no Instituto Federal do Sertão Pernambucano. Não chegou a concluí-lo; o lugar serviu mesmo para lhe impulsionar em uma nova trajetória.

Na ocasião de uma festa com amigo do curso, ele pegou o microfone e desembestou a cantar alguns forrós antigos de que gostava. A ótima aceitação o encorajou a gravar vídeos com as músicas e postar nas redes sociais. Era setembro de 2019, e rapidamente os seguidores foram crescendo, junto com a fama e a produção audiovisual. Dois amigos o ajudaram, dando dicas para usar o TikTok, onde postava os vídeos completos das músicas que, em versões editadas, divulgava no Instagram.

Visão do João gomes de costas e platéia ao fundo

A primeira grande marca foi quando lançou “Meu Pedaço de Pecado”, canção composta em parceria com o amigo e produtor Daniel Mendes. A faixa viralizou, revelando João Gomes para o mundo. Sua aparência de menino frágil e tímido contrastava com a personalidade transmitida por uma voz que confirmava a máxima uma vez expressa pelo poeta, cantador e compositor Pinto do Monteiro: para cantar forró é preciso ter voz de vaqueiro.

João Gomes sentiu-se ainda mais seguro, deixando que seu sotaque e sua cultura atravessassem as músicas e interpretações.

“Um vaqueiro carrega consigo o próprio Sertão e faz da região mais seca do país um lugar de luta diária pela sobrevivência e, principalmente, de valorização de uma tradição. (Vaqueiros) são heróis da nossa terra. Sobre meu timbre vocal, acho que ele me difere. Na verdade, traz ainda mais verdade para minha carreira”, afirma.

TALENTO COMPLETO

Somados à voz e às canções, os vídeos de João contam com seu talento para dançar — pegada certeira para uma rede como o TikTok, que se soma a uma elaborada estratégia de marketing para difundir o artista pelos quatro cantos do país.

João Gomes adotou uma estratégia de marketing bem-sucedida, focada na representação do Nordeste para o Brasil. O resultado é sua inclusão em eventos, festivais e palcos fora do circuito do forró e das vaquejadas, ao lado de grandes artistas da MPB como Caetano Veloso, Vanessa da Mata, Alcione e Geraldo Azevedo.

Esta imagem contribui para que ele tenha uma circulação musical cada vez mais mais abrangente.

As parcerias criativas com grandes marcas também fazem parte da estratégia. Mix Mateus, Santa Clara, Boticário, iFood e Kenner são algumas delas, para quem João Gomes lança música, produtos, além de muita mídia espontânea.

A agenda lotada de shows no São João, com um impressionante total de 35 apresentações, ampliou sua visibilidade e alcance. Como resultado do trabalho de marketing, João Gomes virou presença obrigatória em campanhas publicitárias no Nordeste, superando muitos outros nomes famosos.

Um dos seus vídeos mais exitosos é o de “Eu Tenho a Senha”, seu maior hit. João conta que a inspiração para a música veio depois de uma oração escrita num papel. Ele andava angustiado pela situação precária de sua produção nos vídeos: poucas pessoas assistiam, e as condições para gravar não eram as melhores, dependendo sempre dos celulares dos amigos. No dia seguinte à oração, foi convidado por Jeovanny, um amigo que conheceu em Petrolina, tocador de sanfona (e que passou a acompanhá-lo em todas as futuras produções), para mostrar suas músicas numa vaquejada da região. O cantor ficou muito atento a tudo o que viu e o traduziu na letra.

João Gomes em Show

A canção consagra a imagem do vaqueiro associada a João Gomes. E se tornou uma verdadeira chave para os corações de milhares de nordestinos de todas as idades espalhados pelo país, que encontraram no artista um tradutor de seus sentimentos.

Mas ele, humilde, pensa diferente. Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Kara Véia, seus ídolos, são, para ele, as maiores referências do universo sertanejo. “Todas as palavras que uma canção de vaquejada pode ter já foram usadas por eles”, diz.

O que este jovem cantor e compositor faz, porém, é renovar a longa tradição, imprimir nela a marca da sua geração. O novo sertão de João Gomes dança ao som do piseiro — gênero que nasceu da falta de estrutura técnica e instrumental das bandas do interior para se transformar num queridinho das baladas sertanejas.

“O piseiro era a coisa que no momento estava mais forte, que a galera estava curtindo ouvir”, explica João, que desenvolveu, com a ajuda de seus músicos, um estilo e um ritmo bem próprios para tocar o gênero.

Luiz Gonzaga continua sendo inspiração, mas, como tudo na vida de João foi ousadia, a relação que o jovem estabeleceu com o mestre também passa pelas últimas novidades da tecnologia.

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Eu tenho a senha - João Gomes. Ao vivo em Recife

“No show que aconteceu em São Paulo, há alguns dias, eu levei para o palco uma projeção que exibiu uma animação minha, criança, em Serrita. Em seguida, eu e a versão de Luiz Gonzaga criada por inteligência artificial cantamos juntos a música ‘Eu Tenho a Senha’. Com isso, a tecnologia nos uniu”, descreve, orgulhoso.

Não foi a única estrela com quem ele dividiu palco desde que seu álbum “Eu Tenho a Senha” estourou, ainda em 2021. Como as músicas viraram trends entre celebridades e anônimos nas redes sociais, começaram a chover pedidos de parcerias. Rapidamente vieram nomes do naipe de Xand Avião e Os Barões da Pisadinha. Em ascensão sem fim, João registrou um dos seus megashows de 2021 e o transformou no primeiro DVD,"Ao Vivo em Fortaleza”.

LANÇAMENTOS EM SEQUÊNCIA

Em 2022, veio o segundo disco, "Digo ou Não Digo", conquistando cada vez mais ouvintes e consolidando seu lugar no cenário musical brasileiro. No mesmo ano, o artista apresentou o DVD "Acredite", gravado no Marco Zero do Recife, para um público estimado em 150 mil pessoas.

Já neste 2023, o artista surpreendeu seus fãs com o álbum “Raiz", numa reverência ainda mais forte às tradições dos vaqueiros. Em seguida veio o DVD “Ao Vivo no Sertão”, cujo vídeo completo soma mais de 4 milhões de visualizações no YouTube em pouco mais de um mês.

Os marcos vão se sucedendo em velocidade vertiginosa. Mas João insiste em não tirar os pés e a cabeça da sua Serrita natal. Foi lá, durante a 52ª Missa do Vaqueiro, em julho de 2022, que ele, já famoso, fez um discurso que resume suas crenças e traduz sua força interior.

“É nesta cidade que eu conto para todo o Brasil que o impossível aconteceu na minha vida. Estou muito feliz de estar aqui hoje. Eu não consigo parar de me arrepiar. Se você tem um sonho, não deixe ninguém debochar dele, não. Seu sonho é grande, foi Deus quem o plantou no seu coração. Foi nessa cidade que Deus me deu uma família, foi nessa cidade que aprendi a ser o homem que eu sou. Muito obrigado, Serrita.”

*Hagamenon Brito colaborou para a entrevista

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