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PRECISAMOS

FALAR DOS

ALGORITMOS DE

RECOMENDAÇÃO

O que determina se uma música será sugerida no streaming? Existe impulsionamento pago? Os critérios são transparentes? Plataformas e especialistas respondem

por_Andréia Martins de_Lisboa

O que determina se uma música será sugerida no streaming? Existe impulsionamento pago? Os critérios são transparentes? Plataformas e especialistas respondem

por_Andréia Martins de_Lisboa

É fato: o que faz sucesso nas paradas de hoje e o futuro da indústria da música passam pelas plataformas de streaming, e uma parcela cada vez maior de consumo e descoberta de música é mediada nesses ambientes por sistemas de recomendação orientados por IA (inteligência artificial).

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Felipe Simas com a dupla Anavitória: "plataformas estão aí para jogar do nosso lado"

Com um peso enorme no mercado fonográfico, os algoritmos de recomendação suscitam perguntas que crescem em paralelo à força das plataformas: como eles operam? Com que frequência são aprimorados? Nos levam a descobrir novos artistas? Ou o interesse é apenas reter o ouvinte na plataforma por mais tempo? São, de fato, puro reflexo dos nossos gostos?

Como o sucesso de uma faixa difundida por algoritmos terminará revertendo-se em mais dinheiro para os titulares dos direitos autorais, é bem óbvio por que artistas, produtores, gravadoras, especialistas e outras partes interessadas se debruçam sobre o tema. Alguns estudos críticos dessas ferramentas usam o termo “caixa preta” para definir a suposta falta de transparência delas. Mas será mesmo tão difícil compreender como funcionam?

A UBC chamou diferentes profissionais do setor e as plataformas para participar de uma conversa que está longe de terminar em acordo.

O QUE DIZEM AS PLATAFORMAS

O streaming musical oferece dois tipos de recomendação: algorítmica (feita por máquinas que “leem” os hábitos de escuta de um usuário e, com base neles, lhe sugerem coisas parecidas) e editorial (feita por humanos e destinada à coletividade, não a uma só pessoa). Algumas recomendações envolvem ainda listas de reprodução, mantendo o ouvinte num fluxo contínuo de faixas similares às que ele supostamente curte.

Nenhuma plataforma, por questões mercadológicas, explica com grande nível de detalhes os critérios usados na programação desses algoritmos. Por isso, um relatório publicado pelo Centro de Ética e Inovação de Dados do Reino Unido em fevereiro mencionou problemas de transparência e concluiu que há um viés nos algoritmos: homens brancos com algum sucesso na música são os mais recomendados aos usuários das plataformas de streaming como Spotify, Deezer e Apple Music, todas citadas no documento. O estudo foi feito a pedido do parlamento daquele país para debater os efeitos do streaming na economia da música local.

Segundo a conclusão do estudo, os vieses podem “reduzir a descoberta de novas músicas, homogeneizar o gosto e enfraquecer artistas independentes”. Para os pesquisadores, é necessária uma revisão dessas ferramentas e mais transparência no fornecimento de dados, para que seu impacto na produção e no consumo de música possa ser melhor avaliado. Esta última é uma questão central dos debates sobre sistemas de recomendação em geral.

Para acionar esse recurso, o Spotify fica com uma comissão de 30% dos royalties da gravação nessas sessões, o que poderia se configurar como uma espécie de impulsionamento pago. No entanto, o ouvinte não é informado sobre isso. Quando a música é reproduzida fora dessas playlists, fica isenta da comissão.

Na Apple Music, grande parte das playlists disponíveis é criada por editores, e não por algoritmos, fugindo das indicações a que usualmente as inteligências artificiais acabam recorrendo. A Deezer usa o seu próprio algoritmo, o Flow, que gera listas de reprodução de músicas personalizadas no estilo de rádio. Ele foi aprimorado, passando a se chamar Flow Moods, e agora considera também o humor do usuário (novamente, “medido” através do que ele anda escutando) ao recomendar músicas.

No Spotify, as playlists são criadas por algoritmos que esquadrinham cada movimento do ouvinte (não só o que ele ouve, mas também o que salva, o que compartilha, o que pula etc.). Os dados são comparados com os de pessoas de hábitos parecidos, e todo esse conjunto passa a receber sugestões a partir do que outros desse mesmo grupo têm consumido.

As playlists mais populares da plataforma sueca são Descobertas da Semana, Radar de Novidades, Daily Mix, No Repeat e De Volta pro Repeat. Há também as playlists criadas pelos editores e pelos ouvintes.

Procurado, o Spotify compartilhou as informações sobre algoritmos já presentes em sua página de perguntas e respostas, informou que não permite serviços pagos a terceiros para impulsionar streams, mas não comentou sobre o que seria possível para deixar o funcionamento desses algoritmos mais transparente ou se há um trabalho voltado para gerar mais diversidade nas recomendações.

A ferramenta Discovery Mode, do Spotify, permite que artistas ou gravadoras escolham uma música que queiram destacar para ser impulsionada. Após comunicar-se ao Spotify que música é essa, o sistema da plataforma adiciona esse sinal ao algoritmo, que determina sessões de escuta personalizadas em playlists como Autoplay e Radio, onde há ouvintes já interessados ​​em músicas parecidas. Para acionar esse recurso, o Spotify fica com uma comissão de 30% dos royalties da gravação nessas sessões, o que poderia se configurar como uma espécie de impulsionamento pago. No entanto, o ouvinte não é informado sobre isso. Quando a música é reproduzida fora dessas playlists, fica isenta da comissão.

Já a Deezer explicou em comunicado enviado à UBC:

"Em geral, os algoritmos de recomendação usam princípios gerais como semelhança baseada no conteúdo (propomos a um ouvinte de rock conteúdos rotulados como rock nos nossos metadados) e baseado no uso (se muitos utilizadores ouvirem tanto a faixa A quanto a faixa B, recomendamos a faixa B a um utilizador que ouve a faixa A). Para fornecer recomendações apropriadas, criamos um perfil musical dos nossos utilizadores com base nos dados internos que nos fornecem: o que ouvem, o que gostam como sinal positivo e também o que banem ou saltam como sinal negativo.”

VOCÊ TEM UMA DINÂMICA QUE É O MERCADO INTEIRO PRODUZINDO MÚSICA NÃO COMO MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA, MAS PARA AGRADAR AO ALGORITMO.

Guilherme Ravache, consultor digital
Arquivo pessoal

Questionada sobre os vieses que os algoritmos podem reforçar, a plataforma francesa reconheceu que podem acontecer, mas que está "totalmente comprometida com a transparência das recomendações". A Deezer disse claramente não ter nenhum tipo de impulsionamento em suas políticas.

Apple Music e YouTube Music também foram procurados pela reportagem, mas não retornaram.

TRANSPARÊNCIA, A PALAVRA NO CENTRO DA DISCUSSÃO

Para o consultor digital Guilherme Ravache, que acompanha e estuda o mercado de streaming, os algoritmos têm dois pontos sensíveis: a transparência e a imprevisibilidade.

“O algoritmo, por ser imprevisível, também carrega todo o tipo de viés e distorção da sociedade. Daí, você tem uma dinâmica que é o mercado inteiro produzindo música não como manifestação artística, mas para agradar ao algoritmo. Do outro lado, há uma audiência, produtores de conteúdo, artistas e jornalistas sem a menor visibilidade de como funciona essa ferramenta”, argumenta o consultor.

A cantora e compositora Fernanda Abreu vai além na crítica:

“Acho a política do algorítmo um buraco negro. Ninguém sabe quais são os reais critérios, para onde vai, quem paga o quê, por quem são feitas as recomendações… É pela plataforma? Por gravadoras atrás das plataformas? Por empresas, por editores, por publicidade? Os algoritmos chegam para os consumidores de uma maneira muito perversa. A partir do momento em que você tem um streaming, e o consumidor é livre para escolher o que ele quer, forçar a barra com recomendação de algoritmo, para mim, parece algo pago.”

Arquivo pessoal
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Francisco Junior, da ABMI: "foco deve estar na audiência"

Já a empresária Kamilla Fialho, CEO da K2L, agência que atua no desenvolvimento de carreiras artísticas, relativiza as críticas, vê legitimidade no modelo e diz que é possível beneficiar-se dele.

Este ano, a KL2 já tem uma conquista especial: a música “Tá Ok”, de Kevin O Chris e Dennis DJ, chegou à 25ª posição no Spotify global. “Embora não tenhamos acesso direto a todas as informações detalhadas sobre o papel dos algoritmos de recomendação nesse crescimento específico, conseguimos ver a porcentagem de streams que vem derivada de cada fonte, número de plays diários, cidades mais tocadas e playlists em que a música entrou, entre outros dados. Entendemos que esses algoritmos desempenham um papel relevante ao impulsionar a exposição e a descoberta de músicas para um público mais amplo”, diz Kamilla.

“Compreender e aproveitar (plataformas e suas ferramentas) é essencial para a sobrevivência e o sucesso dos artistas no mercado atual. Dentro da empresa, abordamos esse tema desde o início, auxiliando os artistas em várias etapas, da inserção e da escolha das músicas até a construção do perfil e o engajamento nas plataformas. Reconhecemos que as plataformas têm trabalhado para aprimorar seus algoritmos e fornecer recomendações relevantes aos usuários”, diz.

Francisco Junior, diretor da ABMI (Associação Brasileira da Música Independente), pede equilíbrio. Ele crê que um pensamento 100% voltado ao algoritmo tira o foco de um personagem importante nessa cadeia: a audiência.

“Em um momento de grande transformação digital da sociedade, não seria correto concentrarmos os questionamentos apenas no resultado das recomendações da IA das plataformas, é necessário que artistas, produtores, empresários e labels consigam responder: como minha audiência gostaria de ter a sua experiência com a música? Como seria a jornada da música na vida das pessoas? Entender o comportamento da nossa audiência é fundamental para chegarmos a uma recomendação mais democrática e com mais diversidade”, afirma Junior.

Felipe Simas, gerente de carreira de nomes como Anavitória e Manu Gavassi, faz coro com Júnior e pondera: o segredo é saber usar as plataformas a favor do artista, sem se tornar “escravo” dos algoritmos.

AS PLATAFORMAS TÊM TRABALHADO PARA APRIMORAR SEUS ALGORITMOS E FORNECER RECOMENDAÇÕES RELEVANTES AOS USUÁRIOS.

Kamilla Fialho, empresária musical

"Acredito que não há nada mais poderoso do que a força de uma grande canção e de artistas reais, com uma fan base construída na estrada ao longo de muitos shows. Em casos orgânicos, acabamos por tornar o artista inevitável para o algoritmo, e ele passa a jogar a nosso favor. Por isso, nosso foco é maior na produção e na manutenção da obra do que na promoção em si", afirma Simas.

Ele explica que, apesar de nenhum dos seus últimos lançamentos ‘chartear’ nas plataformas, tem “discos lançados sete anos atrás (como o primeiro de Anavitória, por exemplo, de 2016) que ainda chegam a performar quase 10 milhões de plays por mês nas plataformas”. Um exemplo de que é preciso saber jogar com os recursos que as plataformas oferecem.

Um jogo complicado, na opinião de gente como o cantor e compositor Zeca Baleiro: “Como artista e ouvinte, eu lamento a própria existência do algoritmo. Sei que é um processo incontornável, uma ferramenta que chegou para ficar, mas acho empobrecedor. O que se tem hoje é uma oferta infinita de músicas ao alcance de um click, e as pessoas ouvindo sempre as mesmas coisas, sem variação, sem riscos. No caso do artista novo, ele tem a ilusão da facilidade ao poder lançar um single ou álbum nas plataformas, mas ele pode lançar e ter visibilidade zero, né? Então, pode ser enganador. Mas não vejo como ser diferente”, diz o cantor, que não deixa de reconhecer “a praticidade e a abrangência das plataformas”.

MANIPULAÇÃO POR TERCEIROS: SOMBRA PRESENTE

Relatos em meios especializados no mercado musical dão conta de supostos problemas de manipulação relacionados aos algoritmos, para os quais as plataformas ainda não têm uma resposta clara e definitiva.

Segundo essas suspeitas, alguns criadores privados de playlists bem-sucedidas (ou seja, pessoas não pertencentes às plataformas) venderiam a inclusão de faixas em suas seleções curatoriais. Ao terem enorme alcance, tais listas dão uma difusão igualmente gigante à faixa, que, ajudada pelos algoritmos, termina parando em outras playlists, num ciclo sem fim.

Como a negociação paga para a inclusão de faixas é algo não aprovado nem mediado pelas empresas de streaming, seus algoritmos não seriam capazes de detectar o problema.

Outra suposta manipulação seria através do uso de contas automatizadas (robôs ou fazendas de cliques) para bombar artificialmente uma determinada faixa, influindo no algoritmo de maneira similar à anterior. O impacto na recomendação aos ouvintes é óbvio, mas essa onda de sugestões de audição não refletiria, de modo algum, o gosto orgânico dos ouvintes.

REGULAÇÃO, OPÇÃO DESEJÁVEL?

O estudo do parlamento britânico que já mencionamos aventa a questão de uma “regulação” dos algoritmos argumentando: “a música é um sistema comercial, e há muito pouca supervisão democrática específica das indústrias da música para além da lei de direitos autorais”. Ou seja, um ente “externo” que revise as práticas e garanta a justiça do processo entra na conversa.

Arquivo pessoal

Guilherme Ravache, analista digital

“Não há nenhum órgão regulador ou entidade terceira olhando se isso faz sentido, se está voltado para otimizar a diversidade ou apenas para deixar quem é grande cada vez maior e reduzir o custo de dividir o dinheiro com mais gente”, provoca o consultor Guilherme Ravache.

O termo regulação assusta qualquer big tech, mas o debate no Brasil sobre o PL das Fake News, o 2.630, já começa a normalizá-lo, propondo medidas de combate à disseminação de conteúdo falso em redes sociais, como Facebook e Twitter, e em serviços de mensagens privadas, como WhatsApp e Telegram. Muitas vozes vêm pedindo também uma extensão da ideia às plataformas de streaming de música. O PL, que segue sem previsão de votação, propõe uma abertura do que chama de “caixa preta” dos algoritmos de algumas plataformas.

Simas diz ver espaço para o diálogo com as plataformas e acha “cedo querer buscar respostas conclusivas para julgar as lógicas robóticas”:

“Quase todo sistema acaba por sofrer da síndrome do cobertor curto: você puxa para cobrir um lado e deixa o outro lado descoberto. Nunca vai agradar a todos. O fato inegável é que a era das plataformas digitais é a mais democrática da história da indústria fonográfica. Nunca foi tão prático ter acesso às vastas obras de catálogo, assim como em nenhuma outra época foi tão simples disponibilizar um lançamento para o mundo. Por mais questionáveis que sejam, elas (as plataformas) estão aí para jogar do nosso lado.”

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