• de_São Paulo
Por décadas, Lia de Itamaracá foi merendeira e cozinheira na ilha pernambucana da qual tomou emprestado seu sobrenome artístico. Trabalhava cantando, criando cirandas, sonhando com a carreira artística que acalentava desde o tempo em que era uma menina, uma entre os 22 filhos de um agricultor e uma empregada doméstica.
A cirandeira exibe em São Paulo o Troféu Tradições: "homenagem é bom em vida"
Hoje, ela é a mais célebre representante da ciranda, gênero essencialmente nordestino, patrimônio imaterial do país. Em 2024, quando completa 80 anos de vida, será homenageada por duas escolas de samba, a Império da Tijuca, no Rio de Janeiro, e a Nenê de Vila Matilde, em São Paulo. Mas antes, no início de junho passado, ganhou um justo reconhecimento da UBC , que a escolheu como ganhadora do terceiro Troféu Tradições — prêmio à qualidade das mais genuínas expressões regionais do Brasil, e que já homenageou anteriormente Anastácia (forró) e Dona Onete (carimbó).
A Casa de Francisca, espaço sociocultural e gastronômico de São Paulo, foi o palco da festa, que teve participações de Rincon Sapiência, Teresa Cirstina e Daúde.
Muito emocionada, Lia recebeu o Troféu das mãos da cantora e diretora presidenta da UBC Paula Lima, que não poupou elogios à artista:
“Este ano, é uma grande honra e alegria nos reunirmos para celebrar a vida e a obra da nossa Rainha da Ciranda, Lia de Itamaracá. A única de 22 filhos a se dedicar à música, desde jovem envolvida com as manifestações culturais de sua região”, afirmou Paula.
Ao longo da apresentação, Lia e sua banda também levaram para o espetáculo canções como “Desde Menina”, “Mamãe Oxum”, “Meu São Jorge” e “Quem Me Deu Foi Lia”. A homenageada encerrou o show ao lado de seus três convidados, que cantaram juntos “Mar de Fogo”.
“Eu me sinto muito honrada, porque homenagem é bom em vida. Vou completar 80 anos de idade, são muitas histórias carregando essa ciranda de Pernambuco para o mundo. Me sinto muito feliz e satisfeita”, diz.
Responsável por sucessos como “Desde Menina”, “Meu São Jorge”, “Eu Sou Lia Minha Ciranda Preta Cirandeira”, “Dorme Pretinho”, entre outros, Lia se transformou, nos últimos anos, num ícone não só da música, mas do cinema (em filmes como “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, e “Lia de Itamaracá”, documentário sobre ela) e também da moda. Já foi tema de ensaios de revistas especializadas e teve seu estilo tornado base de uma coleção da grife Rush Praia.
NA CIRANDA DANÇA PRETO, DANÇA BRANCO, DANÇA ÍNDIO, DANÇA RICO, DANÇA POBRE. E TODOS DE MÃOS UNIDAS. A CIRANDA CONTA AS COISAS DA NOSSA GENTE. É SIMPLES E BELA.”
Com tanto êxito, pôde apresentar sua arte nos quatro cantos do país e lá fora. Mas ainda falta uma região, um sonho que espera poder realizar. É o que ela conta nesta entrevista:
A ciranda ganhou nas últimas duas décadas uma visibilidade nacional antes inexistente fora da cena da música regional do Nordeste. O que esse gênero tem de tão especial?
A ciranda é um ritmo gostoso, contagiante, que faz todo mundo se unir e dançar de mãos dadas. Não tem nada mais gostoso. Na ciranda dança preto, dança branco, dança índio, dança rico, dança pobre. E todos de mãos unidas. A ciranda canta as coisas da nossa gente, do nosso lugar. É simples e bela, não tem nada mais maravilhoso que esse ritmo.
Seu envolvimento com a música foi algo muito excepcional no contexto da sua família. Uma entre 22 irmãos, e sem que seus pais fossem da música, a senhora acabou indo por esse caminho. O que explica isso?
Foi um dom que Deus me deu, porque na minha família ninguém canta nem toca nem dança, mas desde pequena eu cantava e botei na cabeça que ia ser uma cantora. Meus irmãos perguntavam se eu ia ter coragem de subir num palco, eram todos muito envergonhados, mas Lia era determinada e sabia o que queria, que era cantar. Então, com a ajuda de Deus e de Iemanjá, fui em frente perseguindo esse sonho.
Nos muitos anos em que trabalhou como merendeira e se dedicou à ciranda nas horas vagas, em algum momento imaginou que construiria uma carreira de sucesso na música, com reconhecimento até mesmo fora do país?
Eu não sabia o que ia acontecer, porque foram momentos muito duros, difíceis. Teve época em que eu fui ao fundo do poço, mas me dava um prazer tão grande estar no palco, cantando cirandas, era tão bom, que eu não pensava em nada. Só ia me deixando levar. Hoje estou aí, nos palcos, no cinema, na moda, aonde me chamar eu vou. Ai, mamãe!
O que ainda falta para se sentir totalmente realizada na carreira?
Eu tenho um sonho, que ainda vou realizar nessa vida. Quero conhecer a África, levar minha ciranda para aquele povo alegre, dançante. Acho lindos os artistas africanos, o povo daquele lugar. Um dia chego lá com minha ciranda.
Qual será seu novo projeto? Um disco? Alguma participação mais em filmes e audiovisuais? Em resumo, onde está a mente de Lia de Itamaracá agora mesmo?
Tem muita coisa acontecendo. Este ano já tem muitos shows na Europa. Quando eu voltar, a gente quer reabrir o Centro Cultural Estrela de Lia, voltar com as atividades artísticas que fazíamos lá. Ano que vem haverá muitos projetos por conta dos meus 80 anos. Tem um disco que vamos gravar, devo participar de mais um projeto para cinema ou televisão. Está sendo planejado. Sem contar os dois desfiles das escolas de samba que vão homenagear Lia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. É a ciranda no samba, é Lia de Pernambuco para o Brasil e para o mundo mais uma vez. Ai, mamãe! •