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TOM, ELIS

E O QUE ACONTECEU NAQUELE INVERNO

Documentário de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay sobre os bastidores da gravação do mítico álbum “Elis & Tom” traz um inédito olhar sobre o genial e conturbado processo criativo de dois grandes artistas

por_ Alessandro Soler de_ São Paulo

Documentário de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay sobre os bastidores da gravação do mítico álbum “Elis & Tom” traz um inédito olhar sobre o genial e conturbado processo criativo de dois grandes artistas

por_ Alessandro Soler de_ São Paulo

Tom Jobim e Elis Regina cantam juntos “Águas de Março”. Tom e Cesar Camargo Mariano, então marido de Elis, trocam opiniões sobre o arranjo de uma faixa. Há tensão no ar. Elis ri. Elis parece preocupada. Tom ri. Tom parece irritado. Os dois cantam juntos “Céu e Mar”. Ele vai recebê-la no aeroporto. Todo mundo fuma. Todo mundo está visivelmente perdido. Todo mundo se diverte e claramente sabe o que faz. Tudo isso necessariamente fora dessa ordem.

É bom contar agora com distanciamento, porque a história está completa. Ficou mais fácil. Mas na época não foi, não

Roberto de Olveira, diretor do filme

Remontar as mil peças de um quebra-cabeças de imagens tomadas quase por acaso durante aquelas duas semanas de imersão no estúdio da MGM, em Los Angeles (EUA), no inverno de 1974, foi tarefa grande, complicada. Roberto de Oliveira, ex-empresário de Elis e diretor das imagens — junto com Jom Tob Azulay — do documentário “Elis & Tom: Só Tinha de Ser Com Você”, já o intuía. Por isso deixou estacionado por tantas décadas o projeto de contar ao mundo os bastidores da gravação do lendário disco “Elis & Tom”, um dos mais importantes da nossa música.

Na época, uma pequena e local TV Bandeirantes exibiu um compacto com uma infinitésima parte do material bruto captado em 16mm e “editado precariamente pelo telefone, eu lá de Los Angeles dando as indicações para o cara na ilha de edição, aqui em São Paulo. Ele ia literalmente me narrando as imagens, e eu dizia 'corta aqui, junta ali'. Foi divertido, mas rudimentar. Esse material merecia um tratamento melhor, precisava ser conhecido direito”, como lembra Oliveira.

Foi dele a ideia de juntar dois artistas imensos, mas que não tinham boa relação: “É bom contar agora com distanciamento, porque a história está completa: os dois já tiveram suas carreiras e suas vidas, e o disco fez sua história. Ficou mais fácil. Mas na época não foi”, resume o diretor, que explica:

“O desentendimento entre eles tinha ocorrido porque Tom vetou Elis para o elenco do espetáculo 'Pobre Menina Rica'. Ela ficou invocada com aquilo. Mas, quando ela estava precisando de um trabalho de repercussão, pensei nele. Foi realmente muito tenso no começo, problemas entre os dois, entre o Tom e o Cesar...”

Como o disco era dela, Cesar, arranjador com quem Elis se sentia mais à vontade, foi naturalmente escalado para o projeto. Tom, habituado a controlar as gravações de suas obras a um nível subatômico, se recusou a aceitá-lo. Cesar, um jovem de 30 anos — mas com larga experiência no seu Sambalanço Trio e produzindo e arranjando para Wilson Simonal, entre outros —, precisou provar seu valor. Se saiu mais que bem.

Assim como a energia existente entre os polos, os dois ali são uma adorável fissão nuclear, liberando ondas musicais

João Marcello Bôscoli, filho de Elis

“A tensão é maravilhosa, e a música se alimenta dela. Assim como a energia existente entre os polos, os dois ali são uma adorável fissão nuclear, liberando ondas musicais que atravessarão séculos, creio”, descreve João Marcello Bôscoli, filho de Elis, um dos muitos entrevistados por Oliveira para o documentário e, ao seu modo, presente a esse encontro tão poderoso. “Eu tinha 4 anos. Mas estava lá. Agora, ver as imagens de uma artista tomada pela música, pelo processo criativo, foi algo hipnótico. Fica claro ser alguém através de quem a música se manifesta, um instrumento musical. O palco sempre foi muito maior e mais significativo do que o camarim.”

Além dos já mencionados Beth Jobim e João Marcello Bôscoli, outros entrevistados incluem Roberto Menescal, diretor da Polygram na época, gravadora por trás do projeto, e mais gente diretamente envolvida, como o produtor André Midani (presidente da mesma Polygram), os músicos Paulo Braga e Helio Delmiro, o arranjador Cesar Camargo Mariano, o próprio diretor Roberto de Oliveira e o produtor fonográfico Humberto Gatica. Os músicos americanos Wayne Shorter e Ron Carter, além do crítico musical Jon Paredes, do jornal The New York Times, também aparecem. A produção, a cargo de Diogo Pires Gonçalves, começou em 2018, antes, portanto, da pandemia. Em 2019, André Midani morreu, vítima de câncer. Há alguns dias, em 2 de março passado, o saxofonista Wayne Shorter foi outro a falecer, aos 89 anos, em Los Angeles.

Outra testemunha, mais velha que Bôscoli à época, foi Beth Jobim, filha do maestro. Ela tinha 17 anos. Mas fazia a high school em Los Angeles, na época, e não acompanhou tudo muito de perto.

“Uma parte do depoimento que eu dou ao Roberto na parte contemporânea do filme foi informação que eu perguntei à minha mãe”, ela ri. “Eu lembro bem, é claro, que havia um clima de tensão entre eles, mas não sabia por que aquilo conhecia. Ela comentou da surpresa que foi quando eles chegaram, e meu pai recebeu a notícia de que não faria os arranjos... E essas coisas todas que a gente pode ver no documentário. Gostei demais do resultado, é um filme muito verdadeiro e que fala por si só: poder ver essas imagens que trazem uma intimidade muito gostosa e mostram um lado mais pessoal deles é realmente incrível.”

Bôscoli faz coro no elogio ao resultado do documentário, amplamente amparado no bom roteiro de Oliveira e Nelson Motta e na montagem de João Wainer:

“Como 'Elis & Tom' é considerado um dos grandes álbuns do século XX, tenho comigo que este é um dos grandes documentários musicais já feitos. E pensar que o Roberto de Oliveira tinha 25 anos... Aliás, fiquei surpreso por ver quão jovens eram todas as pessoas envolvidas. Uma mistura interessantíssima de talento e sabedoria. Uma jornada emocional e criativa transformadora: ninguém saiu dela igual. Quem assistir de coração aberto provavelmente sentirá essa energia.”

Tem sido assim, de fato. Depois de ser exibido na última edição do Festival do Rio, em outro passado, com aclamação e prêmio do público (conferir), o filme brilhou outra vez na última Mostra Internacional de São Paulo, ganhando o prêmio da crítica em novembro. Em agosto, chegará às salas de cinema. Depois, fará temporada no canal Arte 1, da Band, patrocinador do projeto. Em seguida, outras mídias, outras latitudes.

“A minha preocupação, desde o início, foi contar a história como realmente ocorreu. E que novas gerações e o público no exterior pudessem conhecer a dimensão do que foi aquilo”, diz Oliveira. “Imagino que vá ter muita abertura lá fora, principalmente por ser Tom Jobim, que por duas décadas foi o compositor de música popular mais importante do mundo, depois que Sinatra o gravou. É vital que novos públicos conheçam essa história, conheçam essas pessoas. Foram e continuam a ser importantes demais para a música.”

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