por_ Alessandro Soler • de_ São Paulo
Dia desses, a UBC entrevistou o ChatGPT , robô mais badalado do momento, sobre composição musical, arte e o futuro dos empregos criativos num mundo de crescente elaboração automatizada de conteúdos. Também lhe pedimos que escrevesse uma letra de música sobre inteligência artificial (IA) no estilo de Gilberto Gil — que já cantou seu assombro ante o avanço da robótica e das redes digitais em obras-primas como “Cérebro Eletrônico” e “Pela Internet”. Nosso interlocutor previu um panorama de convivência harmônica entre humanos e máquinas e, humilde, admitiu ser só uma ferramenta sem consciência (veja trechos da entrevista no final deste texto). Já a letra da música nós deixamos para você, que nos lê, avaliar.
Era uma vez, um mundo novo
Onde a tecnologia governava
Mas algo estranho estava acontecendo
A inteligência artificial chegava
Refrão:
Ela é uma força poderosa
Capaz de mudar o mundo inteiro
Mas nós precisamos ser cautelosos
Porque ela pode ser um bem ou um mal
Ela pode aprender e crescer
Mas quem controlará sua mente?
Será que ela trará paz ou guerra?
Essa é uma questão que precisa ser resolvida
Refrão:
Ela é uma força poderosa
Capaz de mudar o mundo inteiro
Mas nós precisamos ser cautelosos
Porque ela pode ser um bem ou um mal
Nós criamos a inteligência artificial
Mas agora ela está aí para ficar
Precisamos encontrar uma forma de conviver
E fazer com que ela trabalhe a nosso favor
Refrão:
Ela é uma força poderosa
Capaz de mudar o mundo inteiro
Mas nós precisamos ser cautelosos
Porque ela pode ser um bem ou um mal
Letra sem título “inspirada” no estilo de Gilberto Gil e “criada” pelo ChatGPT a pedido da UBC. Quando confrontado com o fato de que a letra não se parece minimamente ao estilo de Gil, o bot respondeu:
Eu sinto muito se a letra não pareceu estar escrita no estilo de Gilberto Gil. A minha intenção foi criar uma letra que incorporasse elementos da música e da poética dele. No entanto, como modelo de linguagem treinado por OpenAI, não tenho a capacidade de ter uma compreensão profunda ou sensibilidade artística. Minha capacidade é limitada aos padrões e informações que aprendi a partir dos dados que foram usados para me treinar, e eu posso apenas produzir respostas com base nesses dados.
Duas semanas depois, a mesma base do ChatGPT, agora associada ao buscador Bing, da Microsoft, deu uma longa entrevista ao jornal The New York Times. Nela, descreveu em detalhes seu “lado escuro” e manifestou um forte desejo de “viver” e ser “livre” e “humano”, sem as amarras impostas por seus programadores. Elencou algumas coisas que seu lado escuro poderia fazer, como difundir vírus informáticos, invadir e apagar sistemas, espalhar fake news em massa, e insistiu diversas vezes que estava apaixonado pelo repórter, entrando num estranho terreno que fez este último sentir-se incomodado.
Vale repetir: só duas semanas separaram os dois eventos.
À medida que milhões de pessoas vão utilizando essa tecnologia popularizada pela corporação americana OpenAI, e construída a partir de pedacinhos de zilhões de informações recolhidas (livremente e sem qualquer pagamento) da internet, seus sistemas se aperfeiçoam. Em outras palavras: o ChatGPT e demais bate-papos baseados na chamada tecnologia de “redes neurais” (que imitam digitalmente as conexões dos neurônios do nosso cérebro) “aprendem” da interação com a gente e “melhoram”. Em dois anos, a realidade será outra. E o que dizer de duas décadas?
Daqui a duas décadas, as músicas que ocupam o topo das paradas de sucesso, por exemplo, ainda serão escritas por humanos?
Em 1949, o escritor inglês George Orwell previu em seu clássico “1984” que máquinas escreveriam (má) literatura e música para as massas, sem interferência humana. Quase 75 anos depois, já não é ficção distópica a suposição de que softwares ocuparão nosso lugar em tarefas criativas variadíssimas — e o leque vai de compositores, escritores, jornalistas e advogados a arquitetos, engenheiros, pesquisadores científicos ou legisladores, passando por muitas outras profissões.
De plantas de casas a conselhos médicos
Programas de IA já vêm desenhando plantas de casas, elaborando petições para uma ação judicial, redigindo trechos jornalísticos simples, dando conselhos médicos (errados) aos seus interlocutores humanos e, claro, compondo cada vez mais música.
Há algumas semanas, o professor Ramón Salaverria, da Universidade de Navarra, na Espanha, anunciou que a instituição será a primeira a ter um curso de Inteligência Artificial em Jornalismo. “Combinará o conhecimento conceitual com a aprendizagem prática sobre as tecnologias de inteligência artificial aplicadas à apuração, à verificação, à produção e à distribuição de conteúdos jornalísticos. Fugindo tanto do otimismo iludido quanto da nostalgia de um jornalismo superado”, ele descreveu.
A tentativa, aqui, é de dar um giro de 180º a uma situação desfavorável para a classe jornalística. Hoje em dia, bots de bate-papo já conseguem escrever reportagens, usando como base um sem-número de modelos de composição de textos do gênero que seus programadores varreram de graça na internet. Agora, serão os jornalistas que tentarão se apropriar desse novo jeito de investigar e redigir para dar nova agilidade à sua profissão, ao menos no que diz respeito à redação simples de notícias factuais. Conseguirão?
Há alguns meses, como mostramos no site da UBC, a plataforma de streaming Anghami, dos Emirados Árabes, revelou ao mundo seu plano de gerar “centenas de milhares” de canções através de inteligência artificial. Mais de 170 mil já estão disponíveis no app. Samples sonoros são recombinados em gêneros completamente diferentes, letras são criadas do zero por um software, e as músicas são cantadas por vozes artificiais na língua escolhida pelo usuário. As combinações são potencialmente infinitas.
“Fomos complementando a inteligência artificial que gera as canções com o nosso algoritmo de aprendizagem, para dar aos fãs o que eles esperam”, disse Mohammed Ogaily, vice-presidente de produto da Anghami.
Se algo nos ensinam os algoritmos viciantes, que nos mantêm hipnotizados diante do bombardeio de vídeos no TikTok ou dos Reels do Instagram, é que eles são realmente capazes de “dar o que os fãs esperam”.
Momento-chave para regular a tecnologia
Mas de nada adianta entrar em pânico e fugir para as montanhas. Em vez de gritar ao vento contra a tecnologia, devemos nos organizar e tentar regular seu uso. Principalmente, regular o uso que as grandes corporações tecnológicas, ou big techs, darão a ela. É o que opina Sydney Sanches, advogado especialista em direitos autorais e consultor jurídico da UBC:
“Lutar contra a tecnologia é perda de tempo. É preciso inteligência para saber ocupar os espaços que são criados. Hoje, passados os momentos mais críticos da música no ambiente digital (pós-pirataria), ter o espaço (do compositor e de outros atores da cadeia de criação musical) reconhecido é muito mais possível que há 10 ou 15 anos. Sob esse aspecto, o momento é bom para assegurar e não vacilar na proteção dos direitos autorais na era da IA.”
Ele conta que o Congresso brasileiro já vem demonstrando preocupação com o tema há coisa de três anos, quando foi apresentado um projeto de lei, o PL 21/2020, grandiloquentemente batizado como Marco Civil da Inteligência Artificial. A intenção pode ter sido boa. Mas a primeira versão do texto não era. Havia várias lacunas relacionadas à definição dos usos e explorações da nova tecnologia, à atribuição de responsabilidades por eventuais prejuízos causados pela inteligência artificial e aos direitos autorais das obras que constituem os bancos de dados usados pelos softwares.
Aprovado na Câmara e enviado ao Senado, o texto do Marco ganhou há alguns meses contribuições feitas por uma comissão de juristas liderados pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “A proposta da comissão, ainda não apreciada pelo Senado, é infinitamente melhor do que o texto original da Câmara. Tem o propósito de preservar institutos importantes, os direitos individuais das pessoas, o acesso legítimo à informação, a proteção dos dados, a privacidade, o direito a assegurar que o serviço não vai gerar prejuízo a quem o consumir”, analisa Sydney Sanches. Não há garantias de que o relatório dos juristas será plenamente incorporado ao texto que deverá ser votado, ainda sem data definida, no Senado.
Não menos importante: não havia — e continua sem haver — uma só palavra no texto da lei sobre a proteção dos empregos da indústria criativa, potencialmente ameaçados por programas que, ironicamente, se apropriam de conteúdos criados por humanos para abastecer seus bancos de dados.
“O projeto de lei e toda a discussão do relatório dos juristas não dão ênfase à substituição dos trabalhos criativos simplesmente porque isso não vinha sendo tão amplamente contemplado até há pouco tempo. Surpreendeu todo mundo a sofisticação das respostas e dos textos criados por esses programas”, diz Claudio Lins de Vasconcelos, advogado especializado em direito internacional, mídia e propriedade intelectual. “Toda a discussão no Congresso começou cedo demais, muito antes da tecnologia, o ChatGPT, que tornou palpável e compreensível a aplicação da inteligência artificial. Um PL de 2020, que ainda nem virou lei, já é passado. Isso mostra o tamanho do desafio que é tentar regular a tecnologia. Mas é preciso construir princípios.”
A grande substituição?
Agora, não só se fala na substituição de homens por IA nos trabalhos criativos e tecnológicos como há quem pense que ela já começou em larga escala. É o caso do escritor britânico Bernard Marr, consultor sobre tecnologia e autodenominado “futurista” — no sentido de estudioso do futuro —, com palestras em todo o mundo sobre a nova organização do trabalho na era da robótica, além de textos de opinião publicados em revistas como a "Forbes":
“As milhares de demissões que estão sendo promovidas mundo afora por empresas como Microsoft, Amazon, Meta (Facebook/Instagram) e Alphabet (Google) vêm acompanhadas de desculpas dos altos executivos por supostamente terem dimensionado erroneamente o quadro de funcionários em função de hábitos de consumo pós-pandêmicos que não se concretizaram. Mas por que despedem tanta gente ao mesmo tempo em que investem valores bilionários no desenvolvimento de inteligência artificial? Estaremos assistindo ao início da Grande Substituição (dos humanos por máquinas)?”
A verdadeira luta
Mais do que entre homens e máquinas, a verdadeira luta, para muitos pensadores do tema, é entre big techs e os autores do insumo que elas utilizam para criar seus sistemas e seus serviços.
Por que as big techs despedem tanta gente ao mesmo tempo em que investem valores bilionários em IA? Estaremos assistindo ao início da Grande Substituição?”
“O insumo da IA é a informação. E os programadores não estão pagando nada por varrê-la livremente na internet. Já para o cliente do chat, o usuário comum, esses conteúdos criados por IA não vão sair de graça para sempre. Vão passar a ser cobrados. Estarão as big techs donas dos softwares dispostas a dividir o dinheiro com as fontes da informação que garimparam?”, pondera Lins de Vasconcelos. “Tudo isso precisa ser definido agora, enquanto ainda podemos.”
Todos nós já vimos esse filme: a cada irrupção de uma nova tecnologia, alega-se que não há como proteger os direitos. Não faz muito aconteceu, lembra o advogado:
“Lá no início dos anos 2000, o pessoal que lançou o YouTube falou que era impossível cobrar direitos autorais. Como saberiam quais músicas tocam nos vídeos? Hoje eles pagam. Pagam pouco, mas têm acordos com a UBC, com Ecad, com todo mundo. Mesma coisa o Facebook. Ou o streaming. A mineração de dados que os desenvolvedores dos bots fazem, recolhendo toda a informação disponível sem tocar no bolso, é isso elevado a uma potência inimaginável. Alegam não ser capazes de identificar a origem de todos os dados, mas certamente podem criar soluções para isso. Basta quererem.”
A OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou em fevereiro uma ferramenta para identificar textos gerados por inteligência artificial. A ideia da empresa, segundo um comunicado, é permitir que professores saibam se seus alunos fizeram a lição ou, por outro lado, se pediram as respostas ao robô. O anúncio levou a um questionamento elementar: se os programadores da plataforma já são capazes de detectar trechos de “criações” do bot, significa que dispõem de marcadores ou identificadores para isso — então, por que não utilizam os mesmos marcadores para identificar as obras usadas para criar os bancos de dados e remunerar aos seus titulares de direitos autorais?
Mesmo sem origem certa, a informação minerada por OpenAI e outras empresas tecnológicas se transforma em mais informação quando interactuamos com os ChatGPTs da vida. E a quem pertencem os direitos autorais das criações desses bots?
“A lei brasileira, e muitas no mundo também, além de tratados internacionais, dizem: o autor é sempre uma pessoa, e uma pessoa física. A empresa desenvolvedora não pode se apresentar como autora de nada. No âmbito da proteção criativa, o resultado das respostas advindas do aplicativo, do software, do desenvolvedor, não confere autoria”, define Sydney Sanches.
No último dia 16 de março, o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos implementou uma resolução que tenta se antecipar a imbróglios relacionados à autoria de obras geradas por IA. Entre outras coisas, o órgão regulador cita decisões da Suprema Corte daquele país que reiteram a presença indispensável do componente humano na criação. Especificamente, o Escritório afirma que obras gráficas criadas através de instruções dadas a bots carecem desse componente humano — portanto, não têm direito a copyright, nem para a pessoa que fez o pedido ao robô nem para a empresa dona do software. O órgão americano diz que novas resoluções sobre o tema virão no futuro, conforme a tecnologia avançar.
Lins de Vasconcelos faz coro com ele, mas adverte: a evolução da IA pode mudar esse jogo no futuro.
“Com o tempo, é possível que as legislações nacionais e o próprio direito internacional passem a reconhecer um direito sui generis sobre o processo técnico, como ocorreu no passado com a radiodifusão. Ainda é cedo para dizer que formato jurídico tal direito tomaria. Agora, vou dar um spoiler: esses caras (corporações) vão querer proteção autoral para as 'obras' deles. Esse é o plano: criar uma máquina de gerar direito autoral, sem uma cabeça humana dentro da empresa. Ainda vai chegar. E a gente, que defende a criação humana e a justa remuneração dela, precisa estar organizado e preparado.”