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Rock
Por que o ano de 1982 foi tão marcante para um movimento que deu muitos frutos e ainda continua a fazer barulho
por_ Eduardo Lemos • de_ LondresFotos gentilmente pesquisadas e enviadas pelo Acervo Circo Voador.
Tim Maia
Blitz
Circo voador
Seta
O público e artistas em diferentes momentos da história do Circo Voador, no Rio.

Por que o ano de 1982 foi tão marcante para um movimento que deu muitos frutos e ainda continua a fazer barulho

por_ Eduardo Lemos • de_ LondresFotos gentilmente pesquisadas e enviadas pelo Acervo Circo Voador.

Um cartaz traz os nomes das próximas atrações: Fernanda Abreu, Os Paralamas do Sucesso, Hanoi-Hanoi, Leoni, Marina Lima, Ira!, Barão Vermelho, Kiko Zambianchi, Plebe Rude, Camisa de Vênus, Nenhum de Nós, Biquini Cavadão. Essa podia ser a programação do Circo Voador em algum momento dos anos 80, mas é o lineup do Festival Rock Brasil: 40 anos, que está acontecendo desde o ano passado em diversas capitais brasileiras.

O "rock brasileiro dos anos 80" ou "BRock", como batizou o crítico e escritor Arthur Dapieve, completa quatro décadas de vida em 2022 — e a conta não para. Se seus detratores já desistiram há tempos de precisar o fim desta geração, é possível cravar data e local de nascimento: 1982, Rio de Janeiro.

São quatro momentos históricos que se sucedem ao longo daquele ano: em janeiro, quando estreia o Circo Voador na Praia do Arpoador (meses depois, a lona se mudaria para a Lapa, onde está até hoje); em março, com a Rádio Fluminense FM — também conhecida como "A Maldita" — abrindo espaço na sua programação para bandas novas, algo até então inédito no dial local; em julho, quando a Blitz lança seu primeiro single, “Você Não Soube Me Amar”, e finalmente, em setembro, quando sai o álbum de estreia, “As Aventuras da Blitz”. "Foi um estouro… e uma total surpresa pra gente. Acabamos sendo responsáveis por abrir uma série de portas dentro da indústria fonográfica, que até então não olhava para a música feita por jovens", lembra a cantora e compositora Fernanda Abreu.

Aspas

Nasceu uma cena, e de certa forma o que estava acontecendo no Rio começou a reverberar no país todo.”

João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso

Até ali, o rock era um gênero deslocado: na seara política, era malvisto pela ditadura, que o tinha como transgressor, e pela intelectualidade de esquerda, que o achava alienante. "O rock ficou muito em baixa no período entre a Jovem Guarda e os anos 80", observa a pesquisadora e escritora Chris Fuscaldo, autora dos livros “Discobiografia Legionária” e “1979: O Ano Que Ressignificou a MPB”. "Tivemos um caminho de rock progressivo nos anos 70 que nunca colou muito no Brasil, com bandas como O Terço, A Barca do Sol e Bacamarte. Mesmo os Mutantes nunca andaram pra frente depois que a Rita Lee saiu. O rock bombou mesmo nos anos 80.”

No dial, as rádios insistiam numa programação excessivamente voltada para a música internacional pós-disco, e o espaço para a MPB era dominado pela turma dos anos 60 e 70, cujas canções abusavam do discurso indireto e rebuscado — um oferecimento da censura —, sem representar a molecada que passava os dias ouvindo LPs de punk rock e new wave. "Nossa proposta era abrir espaço para quem era bom e não tocava em rádio nenhuma", resume Luiz Antonio Mello, um dos idealizadores da rádio Fluminense FM, no seu livro "A Onda Maldita".

O ROCK DEU UMA BLITZ NA MPB

A frase acima é de Gilberto Gil e ficou famosa na época. De fato, de 82 em diante, tudo ia ser diferente — e num beat bastante acelerado. Uma parceria firmada entre a Fluminense FM e o Circo Voador naquele mesmo ano gerou o projeto Rock Voador, em que as bandas cujas fitas fossem aprovadas pela rádio ganhavam a chance de se apresentar na lona. A maioria das gravadoras tinha sede no Rio e mandava seus olheiros assistirem aos shows, com a missão de encontrar a próxima Blitz.

"O Circo se transformou numa plataforma de lançamento de onde alçaram voo Os Paralamas, Legião, Barão, Lobão, Titãs, De Falla, Capital, Plebe, Kid Abelha, Celso Blues Boy, Ultraje, Ratos de Porão, Cólera, Inocentes, Sempre Livre, Sangue da Cidade, Stress, Dorsal Atlântica, Zé da Gaita, Atlântico Blues, Camisa de Vênus, Coquetel Molotov, Metralha Tcheka e mais 2 centenas de bandas nacionais lançadas nos anos 80", recorda Maria Juçá, diretora do Circo Voador e autora do livro “Circo Voador - A Nave”.

Apenas três anos depois, em 1985, parte dessa turma seria escalada para tocar no gigantesco palco da primeira edição do Rock in Rio. "Nasceu uma cena, e de certa forma o que estava acontecendo no Rio começou a reverberar no país todo", observa João Barone, baterista dos Paralamas.

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EM ÁUDIO EXCLUSIVO, JOÃO BARONE RELEMBRA O CAMINHO DOS PARALAMAS ATÉ CONSEGUIR O PRIMEIRO SHOW NO CIRCO VOADOR

Para Charles Gavin, que respondeu pela bateria do Ira! e dos Titãs e, hoje, se dedica à pesquisa musical, o movimento carioca configura a primeira fase do rock brasileiro dos anos 80. "Certas características comuns marcaram esta primeira onda: o humor, o sarcasmo, a crítica bem-humorada e claro, referências na new wave e no pop internacional da época. Logo depois, as cenas de São Paulo, Brasília, Bahia e Porto Alegre conseguiram seu lugar nesse imenso panorama, cada uma muito diferente da outra, com outras referências (o punk e o pós punk, principalmente), mas com discursos políticos e críticas incisivas", diz Gavin, que na época pensou em desistir da carreira de músico depois de ver uma fita demo do Ira! ser rejeitada pela gravadora. No final de 1984, porém, ele receberia um convite dos Titãs para assumir a bateria do grupo.

5 DISCOS ESSENCIAIS PARA ENTENDER O BROCK,

por Charles Gavin
01.

Eduardo Dussek com João Penca e Seus Miquinhos Amestrados - Cantando no Banheiro (1983)

02.

Barão Vermelho - Maior Abandonado (1984)

03.

Os Paralamas do Sucesso - O Passo do Lui (1985)

04.

Ira! - Mudança de Comportamento (1985)

05.

Legião Urbana - Que País é Este (1987)

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MUDANÇA DE COMPORTAMENTO

"A geração dos anos 80 se preocupava bastante com a sonoridade de uma gravação, interferia no processo aprendendo linguagem e procedimentos dos técnicos e produtores para chegar aonde queria. A tecnologia passou a ser fundamental, tanto na hora de gravar como nas apresentações ao vivo", reflete Gavin. O cantor e compositor Samuel Rosa tinha apenas 16 anos em 1982, quando saiu de Belo Horizonte para passar férias no Rio de Janeiro. "Eu me lembro de escutar muito a rádio Fluminense nesse período. Como na época eu já tocava, aquilo, aos meus ouvidos, trouxe um grande entusiasmo", relembra o cantor e compositor que, anos depois, formaria o Skank, que recentemente decidiu se separar por “tempo indeterminado”.

Circo Voador

"A gente bebeu muito da fonte deles e se beneficiou dos caminhos abertos pela turma dos anos 80. Pegamos o showbusiness mais sofisticado, mais estruturado. Foi possível constatar isso na estrada, houve uma profissionalização muito maior, tanto técnica quanto artística", reconhece o mineiro.

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SAMUEL ROSA NARRA À UBC COMO ESCUTAR A RÁDIO FLUMINENSE O IMPACTOU

A evolução do espetáculo ao vivo, aliás, é um dos legados desta geração, tanto do lado dos artistas quanto das casas de shows, na visão de Maria Juçá. "Eu odeio playback, tu odeias playback, todos nós odiamos playback. Música é energia pura, é instinto, é bomba atômica, é energia que move. Tem que ser vivida intensamente, sem disfarce. Mostramos que é possível fazer música ao vivo, gastando um pouquinho mais e tendo um retorno muito maior."

Outra importante contribuição que esta geração deixou para a cultura brasileira são as letras, de acordo com Chris Fuscaldo. "Eles chegam dizendo tudo diretamente, expondo seus pontos de vista e falando o que toda uma juventude estava querendo falar."

A força das canções fala até mesmo com os jovens das gerações seguintes: a cantora e compositora Letrux celebra a proposta poética da geração que teve Cazuza, Paula Toller, Arnaldo Antunes, Marina Lima, Renato Russo, Herbert Vianna e outros letristas que se tornaram referência para qualquer compositor popular no Brasil. "Acho que a letra (nos anos 80) chega com uma informalidade muito sedutora. 'Quais são as cores e as coisas /Pra te prender /Eu tive um sonho ruim e acordei chorando /Por isso eu te liguei'. Não que não existam letras do passado com esse coloquialismo. Mas acho que nos anos 80 veio a genialidade da enxurrada de um poder mais sintético, talvez. Pop. Havia uma certa precisão. Mesmo que com muito sentimento, não rolam rodeios", diz.

TEMPOS MODERNOS

O mercado de pop/rock brasileiro forjado pela geração dos anos 80 continua aquecido, quatro décadas depois — em parte por causa dos mesmos artistas daquela época, que nunca pararam de lançar discos e fazer shows. "As bandas dos anos 80 souberam se manter presentes na cena. Os Paralamas e os Titãs sempre foram sucesso, por exemplo, nunca tiveram uma queda muito grande", aponta Chris Fuscaldo. Segundo ela, as principais obras criadas por essa geração se tornaram atemporais. "Que País É Esse”, da Legião, nunca foi tão atual como agora", exemplifica. Opinião parecida tem o produtor Peck Mecenas, idealizador do Festival Rock Brasil: 40 Anos. "Eles remetem o público a um maravilhoso momento na história da música. Além disso, são artistas com músicas muito atuais", diz. Na plateia dos shows, Mecenas diz ver uma bem-vinda mistura de gerações. "Grande parte do público vai ao festival em família, e isso mostra que está existindo uma renovação de ouvintes."

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O segredo, diz Fernanda Abreu, foi essa turma ter permanecido criativa nos últimos 40 anos. "O que está mantendo a gente é a produção musical mesmo. A galera que parou de produzir pode ter ficado pelo caminho", opina a artista. Maria Juçá adiciona mais um fator: "a disposição de ousar, correr riscos e se superar foi um traço comum. Todos juntos criaram uma resistência e uma cumplicidade para que as coisas mudassem de lugar.”

CassiaLulu santosCirco voador

AspasEles remetem o público a um maravilhoso momento na história da música. Além disso, são artistas com músicas muito atuais.”

Peck Mecenas, idealizador do Festival Rock Brasil: 40 Anos.
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Circo voador
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A IMPORTÂNCIA DAS MULHERES NESTA HISTÓRIA

Chris fuscaldo
CHRIS FUSCALDO, pesquisadora e escritora

"As mulheres têm um protagonismo maior nos anos 80, mas é preciso tomar um pouco de cuidado (ao afirmar isso). Toda vez que a gente vê mulheres aparecendo, na história da MPB, pensa ‘ali elas foram privilegiadas’. Mas, quando se compara com o número de homens, você vê muitas cantoras e compositoras. A gente tem um ano muito importante para as mulheres, que foi 1979, o ano em que mais mulheres lançaram discos, não apenas cantoras, mas compositoras. A Marina Lima foi uma delas. Dali pra frente, a indústria passa a olhar para as mulheres com outros olhos. A Fernanda Abreu se lança com a Blitz, e a Paula Toller, com o Kid Abelha. É importante a gente lembrar que a mulher sempre teve muito esse lugar de front woman porque é mulher, bonita, é uma imagem. A mulher compositora é que sempre sofreu mais pra chegar aonde queria. De qualquer forma, o rock dos anos 80 foi uma abertura. Lenta, mas foi."

Fernanda abreu
FERNANDA ABREU, cantora e compositora

A gente sabe que o meio musical é majoritariamente masculino, não só em termos de cantores, compositores, arranjadores, produtores musicais, engenheiros de som, executivos de gravadora, mas também na mídia — radialistas, TV, imprensa, jornalistas — e na estrada — iluminadores, roadies, produtores locais, empresários, contratantes de shows “é impressionante como tem mais homem que mulher”. Acho que aos poucos isso está mudando, especialmente na parte de criação. O Brasil sempre teve uma tradição de intérpretes femininas muito fortes, mas a Rita Lee foi uma marco muito importante, como uma grande compositora, assim como a Joyce, a Marina Lima, e aí entra a nossa geração também: Paula, eu, Marisa Monte, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto. A gente foi conquistando esse espaço. Hoje, no cenário pop, você vê muitas cantoras, Ludmilla, Luísa Sonza, Jade Baraldo, Tulipa Ruiz, Céu, Tiê… Também no rap, como Tássia Reis, Flora Mattos, e no funk, Tati Quebra-Barraco, Deise Tigrona, Valesca. Acho que a mulherada está vindo muito forte, e cada vez mais compondo e escrevendo sobre seus assuntos preferidos e suas narrativas. Acho que esse é um caminho sem volta, não só na arte e na música, mas na própria sociedade."

Letrux
LETRUX, cantora e compositora

"Essas mulheres (Fernanda Abreu, Paula Toller e Marina Lima) e outras abriram caminhos para que eu hoje em dia estivesse aqui, cantando e compondo. Eu sinto que aprendi a dançar com o Sla Dance Radical Club, da Fernanda Abreu, lembro exatamente d’eu dançar e tentar decorar letras. Kid Abelha foi um dos primeiros shows que vi ao vivo (Mas Paralamas foi o primeiríssimo mesmo), ficava lá sonhando com romances ouvindo letras da Paula Toller. Já a Marina Lima, me faltam palavras para falar sobre sua importância na minha vida. Exímia compositora, suas músicas fazem parte de todos os momentos da minha vida. Dos tristes aos felizes, é bom lembrar de algo e a trilha ser na sua língua materna. Há muita música gringa na minha história também, sem dúvida. Mas ‘quando anoitece, é festa num outro apartamento’, isso rasga nosso coração. E que bom!"

TODO ANO TEM UMA HISTÓRIA E TODA HISTÓRIA TEM UM ANO

por_Ana Maria Bahiana • de_Los Angeles

Todo ano tem uma história, e toda história tem um ano. E todo passo do tempo tem suas marcas. Sempre pensei em 82 como uma abertura e uma transição. O verão foi particularmente bonito (e, no Rio, verões marcam como índices históricos). Foi o ano de tantas coisas, mas teve mais uma, a revista que eu criei, “Pipoca Moderna”, que foi desdobramento de “Rock, A História e a Gloria/Jornal de Música”, dos anos 70, e seria, três anos depois, a semente para a “Bizz”. Esse é um dos elementos que definem, para mim, o elemento “transição” de 82.

A transição também quer dizer que a consolidação da mistureba rock-com-tudo, que vinha crescendo espontaneamente nos anos 70, criou o termo “Rock BR” e começou a estruturação de uma indústria de disco e show em torno dessa ideia e dessa marca.

Perfeito Fortuna e o Circo Voador eu sempre vi como um sinal alvissareiro – ali plantado no Arpoador, que sempre foi um lugar sagrado para quem quer paz, erva e paisagem —, um pressentimento bom. Acolheu todas as raízes e as ideias dessas duas levas, a que vinha dos 70 e a que tomava forma em 82.

Isso pra mim foi o sinal da abertura. Três anos depois, mais ou menos, a ditadura se dissolveria na abertura do primeiro grande festival de rock.

Não sei dizer quais discos de 82 eu mais gostava. Como diria meu mestre Júlio Hungria eu baguncei meu armário de memórias e hoje ouço tudo, e muito mais e alegremente fora de ordem.

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