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Funk

A MAIORIDADE DO

Trabalho de gerações de artistas e produtoras pela profissionalização do gênero dá frutos e o posiciona como mainstream no Brasil, enquanto Anitta lidera uma verdadeira explosão globalpor_ Akemy Morimoto do_ Rio e Alessandro Soler de_ São Paulo colaboração de _ Kamille Viola do_ Rio
Rodrigo Oliveira
Trabalho de gerações de artistas e produtoras pela profissionalização do gênero dá frutos e o posiciona como mainstream no Brasil, enquanto Anitta lidera uma verdadeira explosão global
por_ Akemy Morimoto do_ Rio e Alessandro Soler de_ São Paulo colaboração de _ Kamille Viola do_ Rio

O funk vive um bom momento sem precedentes. Historicamente desprezado por uma certa intelligentsia, sub-representado no rádio e na TV e ligado, mais que nenhum gênero musical, ao noticiário negativo na imprensa, deu a volta por cima. Não que tenha sido fácil: foram necessários o trabalho de gerações de artistas desde o início da popularização, nos bailes do Rio de Janeiro dos anos 1980; a escala industrial que ganhou em São Paulo, nos anos 2000; a explosão mainstream com as fusões a gêneros variadíssimos, do pop, do rap e do trap ao pagode e ao sertanejo —; e, sobretudo, o olhar afiado de um punhado de produtoras, que apostaram forte na massificação.

O fato é que deu certo.

Emplacando cada vez mais hits nas listas de mais ouvidas do Spotify e do YouTube, e brigando de igual para igual com gêneros que dominam o gosto do brasileiro, como sertanejo, pagode e pisadinha, o funk alcançou a maioridade.

Quem também cita Anitta entre os grandes responsáveis atuais por essa nova abertura do mundo ao funk é Umberto Tavares. Um dos mais importantes produtores do gênero, ele também reivindica o papel de grandes nomes da história do funk com os quais trabalhou, como Claudinho & Buchecha, Kelly Key, Latino e Perlla:

“Anitta é um expoente mundial da música brasileira, né? Então, as pessoas tendem a olhar o funk, a partir dela, com mais respeito. Mas não podemos nos esquecer de Claudinho & Buchecha, nos anos 1990, com ‘Quero Te Encontrar’, da Perlla, no início do século XXI, com ‘Tremendo Vacilão’; e com ‘Depois do Amor’, em colaboração dela com o Belo… Houve já vários momentos em que o funk teve um estouro pop e uma aceitação maior. O que acontece agora é que começou a ser visto pelos maiores empresários, inclusive de outras áreas. Virou uma junção infalível: um segmento com essa força popular, que faz o mundo inteiro dançar, e uma gente que sabe trabalhar. Vai ser cada vez mais abraçado e requisitado internacionalmente.”

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"A gente era chamado de maloqueiro, de marginal, não tocava em festa de formatura nem, muito menos, na TV. Essa barreira a gente quebrou. Agora, nos festivais, nos recebem com camarim, técnico de som, equipe profissional e respeito. Muita gente participou dessa luta, mas tem um nome que levantou nossa bandeira como ninguém, não só aqui como no mundo todo, e esse nome é Anitta", afirmou Rodrigo Oliveira, dono da GR6, uma das principais produtoras de funk do país, com um catálogo de 220 artistas, entre eles MC Hariel, cinco milhões de audições mensais no Spotify e figura que traduz a metamorfose sofrida pelo gênero em que milita.

De origem humilde — trabalhou como entregador de pizza na periferia de São Paulo, onde nasceu —, o cantor e compositor começou produzindo letras para o chamado funk ousadia, caracterizado por mensagens sexuais explícitas, em meados da década passada. Depois, passou pelo funk ostentação, com músicas sobre carrões, dólares e a vida do 'self made man' da favela. Agora, faz parcerias com o DJ superstar global Alok em faixas como "Ilusão" (uma denúncia da degradação a que são submetidos os dependentes químicos da Cracolândia, em São Paulo) e "180" (crítica à violência de gênero e à misoginia).

Rodrigo Oliveira

AspasA GENTE ERA CHAMADO DE MALOQUEIRO, DE MARGINAL, NÃO TOCAVA EM FESTA DE FORMATURA NEM, MUITO MENOS, NA TV. AGORA, NOS RECEBEM COM CAMARIM, TÉCNICO DE SOM, EQUIPE PROFISSIONAL E RESPEITO .”

Rodrigo Oliveira, dono da produtora GR6
Aspas

A GENTE ERA CHAMADO DE MALOQUEIRO, DE MARGINAL, NÃO TOCAVA EM FESTA DE FORMATURA NEM, MUITO MENOS, NA TV. AGORA, NOS RECEBEM COM CAMARIM, TÉCNICO DE SOM, EQUIPE PROFISSIONAL E RESPEITO .”

Rodrigo Oliveira, dono da produtora GR6

A transformação, no estilo e nas temáticas, deu a Hariel o título de "artista mais promissor do funk consciente", na definição do Jornal do Rap, publicação que é referência nos sons das periferias:

"Eu não consigo entender como as pessoas ainda tentam desvalorizar as mulheres, tá ligado? Deus, na minha concepção, é uma mulher grávida, é uma mulher que vai dar a luz", afirmou Hariel, cujos feats com nomes consolidados do rap — Rael, Filipe Ret — e do funk — MC Dricka e MC Don Juan, um dos maiores da cena contemporânea — são presença constante nas listas das mais tocadas das plataformas de streaming.

A paulistana MC Dricka, aliás, com só 23 anos, é outro nome que virou símbolo do atual boom funkeiro. Resume em si a ascensão feminina numa cena historicamente chamada de machista — não só pelas letras objetificando as mulheres, mas principalmente pela quase ausência delas entre os MCs mais destacados — e virou um fenômeno no TikTok, rede social na qual o funk se tornou a trilha sonora de uma infinidade de vídeos que somam bilhões de visualizações.

Em maio passado, ela lançou seu segundo álbum, "Rainha" (pela Som Livre e GR6), e anunciou a primeira turnê pela Europa, depois de ir parar nos telões da Times Square de Nova York, ser a única brasileira indicada ao BET Awards, do canal americano de TV dedicado à cultura urbana negra Black Entertainment Television, e fechar contratos para representar marcas do naipe de Lacoste e HBO Max.

Como Rodrigo, da GR6, Dricka não titubeia na hora de dar o crédito pelo renovado interesse pelo funk. "Obrigada, Anitta, por abrir todas as portas internacionais (para nós)", ela disse em entrevista ao podcast PodPah. "Eu admiro o trabalho dela. A gente nunca pode dizer que quer ser igual à Anitta. Anitta só tem ela. Eu quero ser a Dricka, só que no mesmo patamar que ela."

No que depender de produtoras como Alana Leguth, as chances da jovem funkeira são altas. Sócia-diretora da Kondzilla, uma das mais emblemáticas produtoras do gênero do país — fundada por seu marido, Konrad Dantas —, Alana criou o projeto HERvolution, um selo dedicado a garimpar talentos entre as mulheres e promovê-las no universo do funk.

Rodrigo Oliveira

AspasEU VIM DO FUNK, DIGO ISSO COM ORGULHO, E NUNCA O ABANDONEI. ESTAMOS PROVANDO QUE O QUE FAZEMOS É MARAVILHOSO. A GENTE TEM UMA FORÇA INCRÍVEL, O MUNDO TODO AGORA VAI SABER.”

Anitta
Aspas

EU VIM DO FUNK, DIGO ISSO COM ORGULHO, E NUNCA O ABANDONEI. ESTAMOS PROVANDO QUE O QUE FAZEMOS É MARAVILHOSO. A GENTE TEM UMA FORÇA INCRÍVEL, O MUNDO TODO AGORA VAI SABER.”

Anitta
Anita

"Não vamos fingir que (o funk) é um mercado superfácil de lidar (para as mulheres). Temos inúmeros desafios, mas hoje é muito melhor do que ontem, e precisa ser feito ainda mais para o amanhã", resumiu. "Em um ano, o HERvolution virou muito mais que a frente feminina da KondZilla; somos o propósito da representatividade no audiovisual, na música, na frente e atrás das câmeras e microfones. Queremos mostrar que o lugar das mulheres na música e no audiovisual vai muito além de estar cantando, dançando ou performando. Podemos e devemos ocupar todos os lugares."

Além da Kondzilla, outras produtoras por trás da definitiva profissionalização do funk, como a GR6 e a Portuga Records (de Marcelo Portuga, empresário de astros do funk como Kevinho e Jottapê), além da agência de empresariamento K2L, de Kamilla Fialho, hoje veem na representatividade o grande vetor de crescimento futuro do gênero.

Tem sido assim, ao falar sobre gênero, raça, origem social e sexualidade, que Rebecca, um dos grandes nomes do funk carioca na atualidade, conquista cada vez mais fãs.

“Sou uma mulher negra, de favela, artista e cidadã. Levanto essas bandeiras porque elas fazem parte de quem eu sou”, ela afirmou. “As minas sentiam muita falta de serem representadas. Eu mesma sentia. Já tínhamos algumas veteranas, como a Valesca, por exemplo, mas agora temos um monte de mulher incrível, cheia de talento, somando nessa cena do funk.”

Mulheres, artistas de minorias sexuais, diferentes vertentes (beats, funk 150 bpm, trapfunk), mensagens hedonistas ou sociais: um olhar 360 sobre as várias sensibilidades abrigadas sob o guarda-chuva do funk é a garantia de ocupar todos os espaços. Isto e também, claro, um bom canal no YouTube para divulgar o som. Portuga, por exemplo, recentemente comprou o famoso Funk24por48, com quase 8 milhões de inscritos e mais de 2 bilhões de visualizações de seus vídeos.

"Essa aquisição da Portuga Records promete ser a largada de mais um avanço do funk nas plataformas digitais", ele escreveu numa rede social.

A velha rivalidade entre Rio e São Paulo pela hegemonia do funk ficou para trás. Pelo menos é o que pensa Rodrigo Oliveira, para quem as cenas das duas cidades se complementam: "O funk do Rio de Janeiro é incrível. Para mim, é um dos melhores shows. Eles são fodas, nasceram para aquilo. Mas os de São Paulo se profissionalizaram, e a gente contribuiu com isso. A gente tem clipe, press release, tem tudo. A GR6 posicionou o funk. O Kond é um cara inteligentíssimo e ajudou muito nisso também. As grandes gravadoras estão olhando para os nossos artistas: tenho artista na Warner, Sony, Som Livre… Os grandes presidentes nos olham."

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A lógica é simples: divulgados nos grandes canais do YouTube, os hits do gênero bombam no Spotify, na Apple Music ou na Deezer, geram royalties para seus criadores e fazem girar a roda da produção de novas músicas. "Lançamos em fevereiro a parceria de Pedro Sampaio com Anitta e, em 15 dias, já era segundo lugar no streaming em Portugal, top 20 no Brasil. Através desses canais, a gente chega ao mundo quase instantaneamente. A gente faz turnê por esses lados aí, é show bombando. O mundo está querendo, está encantado com o funk", analisou Rodrigo, da GR6, que vê uma multiplicação de polos de produção no país: "Depois do Rio e de São Paulo, veio Recife. Agora o foco é Belo Horizonte."

Mas o limite mesmo, para eles, é o céu. "Eu vim do funk, digo isso com orgulho, e nunca o abandonei. Estamos provando que o que fazemos é maravilhoso. A gente tem uma força incrível, o mundo todo agora vai saber", disse Anitta à UBC, há uns anos, para uma reportagem sobre sua explosão pop, um trabalho de construção de carreira meticulosamente planejado, como poucos no país, e que, como ela diz, sempre se amparou em sua base funkeira.

No Brasil, a despeito do momentum único, será que o funk vai conseguir destronar o sertanejo como gênero mais popular?

"Ainda é cedo para dizer. Mas o caminho que o funk está trilhando é de clara ascensão", disse Leo Morel, pesquisador musical que fez com o também pesquisador Vitor Gonzaga dos Santos um levantamento comparando as execuções de janeiro de 2022 às de janeiro de 2021, no Spotify e no YouTube, e concluiu que funk e rap, juntos, tiveram um salto de 200% na lista de mais ouvidas. Além disso, os dois gêneros representaram 55% das execuções totais de artistas de uma das maiores distribuidoras digitais do país, a ONErpm, entre outubro de 2021 e janeiro deste ano.

"O funk e o rap encaixaram muito bem em aplicativos como o TikTok. A garotada que consome isso os adotou e ajuda a difundir muito esses estilos, tanto em áreas diferentes dos centros urbanos como em classes sociais diferentes da classe média. A gente vê isso como um movimento acontecendo, questão de tendência", contou Morel.

A apresentação de Kevin o Chris durante show do rapper americano Post Malone, no Lollapalooza 2019, parece ter sido um marco para a naturalização do funk entre os espaços da classe média-alta. Mas uma análise sobre as condições em que isso se deu mostra que ainda há problemas. É o que explicou Kamilla Fialho:

“A inclusão definitiva do funk nesses lineups ainda não aconteceu, na verdade. O nosso país ainda não consegue enxergar um show de funk dentro de um festival elitizado como esse. Qual a importância dessa inclusão? É total. É dar valor às nossas raízes, a um gênero musical que é nosso, que a gente cria e que salva tantas pessoas. Ainda não conseguimos entrar de verdade nos grandes festivais, precisou vir um gringo (Malone) para isso (convidar Kevin o Chris).”

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Kamila Fialho
A empresária Kamilla Fialho

Quem faz eco com ele é Kamilla Fialho, com nomes como Anitta, MC Kevin O Chris, Sapão, Naldo, Rebecca e Lexa no currículo. “Funk é música urbana, que vem da comunidade, vem do povo, e o excesso de informação ajudou bastante. As plataformas de streaming e a facilidade que elas trazem ajudaram na democratização. As pessoas estão começando a entender que o funk de fato é pop.”

Para que a cena decole de vez, na opinião de Fialho, falta melhor preparo entre os artistas e uma mente dos empresários mais aberta ao novo. “Entre muitas coisas a melhorar, está a maturidade diante da (aceitação às) mulheres que se posicionam no mercado. Sobre os artistas que chegam, a maioria são pessoas que, infelizmente, não tiveram uma estrutura familiar, aquela coisa da criação que deveríamos todos ter, com educação e cultura. O que a gente precisa é de artistas dispostos a aperfeiçoar o trabalho, a crescer. E de um mercado que saiba se adaptar às tecnologias, às fusões e novidades.”

Morel concorda e aponta outro problema: uma lógica de produção e distribuição atual, ele diz, calcada numa excessiva rivalidade entre produtoras, sobretudo, mas também entre alguns artistas:

"Ainda falta articulação. Eu tive oportunidade de conhecer pessoas que vêm da cena do rap paulistano e que falaram que a cena dos anos 90 não foi para a frente por isso: as bandas não só não se apoiavam como eram quase inimigas. Isso não contribui nada para uma cena musical. Os Beatles combinavam com os Rolling Stones como lançariam seus discos (risos). Ninguém chega a lugar nenhum sozinho."

Rodrigo Oliveira
A empresária Kamilla Fialho
Alana Leguth

TRÊS PERGUNTAS PARA ALANA LEGUTH

Que mudanças vê no mercado do funk, entre o momento em que começou a trabalhar e hoje?

Eu sou da Baixada Santista e sempre ouvi funk, desde a minha adolescência. Naquele tempo, o funk cantava a realidade da época de uma forma mais explícita, e quem não conhecia (ou não vivia) essa realidade acabava achando o gênero pesado e apologético (ao crime e às drogas). Então, é gratificante hoje poder acompanhar esse processo de desmarginalização do movimento e contribuir para o crescimento, profissionalização e exposição do funk, mostrando para o mundo que não somos apenas um gênero musical, somos um movimento cultural.

Este seria o melhor momento para o funk?

Se analisarmos o geral em uma linha do tempo, hoje ouvir funk na TV é normal, estamos em novelas, filmes, séries, comerciais. O nosso funk toca em baladas e rádios fora do Brasil, caiu no gosto de artistas internacionais, estamos em vídeos de influencers de todo o mundo. Já chegamos muito longe, podemos e vamos ainda mais.

No Brasil, se misturou ao brega, ao sertanejo. Lá fora, ao reggaeton, ao pop latino e europeu... Como enxerga esses movimentos?

É possível misturar funk com qualquer outro gênero musical e ainda assim identificar que aquele trecho é um funk. Eu acho incrível. É não apenas um sinal de força como também de reconhecimento. Anitta e tantos outros artistas que brilham lá fora estão mostrando uma parcela da nossa potência. Isso é só o começo.

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