O funk vive um bom momento sem precedentes. Historicamente desprezado por uma certa intelligentsia, sub-representado no rádio e na TV e ligado, mais que nenhum gênero musical, ao noticiário negativo na imprensa, deu a volta por cima. Não que tenha sido fácil: foram necessários o trabalho de gerações de artistas desde o início da popularização, nos bailes do Rio de Janeiro dos anos 1980; a escala industrial que ganhou em São Paulo, nos anos 2000; a explosão mainstream com as fusões a gêneros variadíssimos, do pop, do rap e do trap ao pagode e ao sertanejo —; e, sobretudo, o olhar afiado de um punhado de produtoras, que apostaram forte na massificação.
O fato é que deu certo.
Emplacando cada vez mais hits nas listas de mais ouvidas do Spotify e do YouTube, e brigando de igual para igual com gêneros que dominam o gosto do brasileiro, como sertanejo, pagode e pisadinha, o funk alcançou a maioridade.
Quem também cita Anitta entre os grandes responsáveis atuais por essa nova abertura do mundo ao funk é Umberto Tavares. Um dos mais importantes produtores do gênero, ele também reivindica o papel de grandes nomes da história do funk com os quais trabalhou, como Claudinho & Buchecha, Kelly Key, Latino e Perlla:
“Anitta é um expoente mundial da música brasileira, né? Então, as pessoas tendem a olhar o funk, a partir dela, com mais respeito. Mas não podemos nos esquecer de Claudinho & Buchecha, nos anos 1990, com ‘Quero Te Encontrar’, da Perlla, no início do século XXI, com ‘Tremendo Vacilão’; e com ‘Depois do Amor’, em colaboração dela com o Belo… Houve já vários momentos em que o funk teve um estouro pop e uma aceitação maior. O que acontece agora é que começou a ser visto pelos maiores empresários, inclusive de outras áreas. Virou uma junção infalível: um segmento com essa força popular, que faz o mundo inteiro dançar, e uma gente que sabe trabalhar. Vai ser cada vez mais abraçado e requisitado internacionalmente.”
"A gente era chamado de maloqueiro, de marginal, não tocava em festa de formatura nem, muito menos, na TV. Essa barreira a gente quebrou. Agora, nos festivais, nos recebem com camarim, técnico de som, equipe profissional e respeito. Muita gente participou dessa luta, mas tem um nome que levantou nossa bandeira como ninguém, não só aqui como no mundo todo, e esse nome é Anitta", afirmou Rodrigo Oliveira, dono da GR6, uma das principais produtoras de funk do país, com um catálogo de 220 artistas, entre eles MC Hariel, cinco milhões de audições mensais no Spotify e figura que traduz a metamorfose sofrida pelo gênero em que milita.
De origem humilde — trabalhou como entregador de pizza na periferia de São Paulo, onde nasceu —, o cantor e compositor começou produzindo letras para o chamado funk ousadia, caracterizado por mensagens sexuais explícitas, em meados da década passada. Depois, passou pelo funk ostentação, com músicas sobre carrões, dólares e a vida do 'self made man' da favela. Agora, faz parcerias com o DJ superstar global Alok em faixas como "Ilusão" (uma denúncia da degradação a que são submetidos os dependentes químicos da Cracolândia, em São Paulo) e "180" (crítica à violência de gênero e à misoginia).
A GENTE ERA CHAMADO DE MALOQUEIRO, DE MARGINAL, NÃO TOCAVA EM FESTA DE FORMATURA NEM, MUITO MENOS, NA TV. AGORA, NOS RECEBEM COM CAMARIM, TÉCNICO DE SOM, EQUIPE PROFISSIONAL E RESPEITO .”
Rodrigo Oliveira, dono da produtora GR6A GENTE ERA CHAMADO DE MALOQUEIRO, DE MARGINAL, NÃO TOCAVA EM FESTA DE FORMATURA NEM, MUITO MENOS, NA TV. AGORA, NOS RECEBEM COM CAMARIM, TÉCNICO DE SOM, EQUIPE PROFISSIONAL E RESPEITO .”
Rodrigo Oliveira, dono da produtora GR6A transformação, no estilo e nas temáticas, deu a Hariel o título de "artista mais promissor do funk consciente", na definição do Jornal do Rap, publicação que é referência nos sons das periferias:
"Eu não consigo entender como as pessoas ainda tentam desvalorizar as mulheres, tá ligado? Deus, na minha concepção, é uma mulher grávida, é uma mulher que vai dar a luz", afirmou Hariel, cujos feats com nomes consolidados do rap — Rael, Filipe Ret — e do funk — MC Dricka e MC Don Juan, um dos maiores da cena contemporânea — são presença constante nas listas das mais tocadas das plataformas de streaming.
A paulistana MC Dricka, aliás, com só 23 anos, é outro nome que virou símbolo do atual boom funkeiro. Resume em si a ascensão feminina numa cena historicamente chamada de machista — não só pelas letras objetificando as mulheres, mas principalmente pela quase ausência delas entre os MCs mais destacados — e virou um fenômeno no TikTok, rede social na qual o funk se tornou a trilha sonora de uma infinidade de vídeos que somam bilhões de visualizações.
Em maio passado, ela lançou seu segundo álbum, "Rainha" (pela Som Livre e GR6), e anunciou a primeira turnê pela Europa, depois de ir parar nos telões da Times Square de Nova York, ser a única brasileira indicada ao BET Awards, do canal americano de TV dedicado à cultura urbana negra Black Entertainment Television, e fechar contratos para representar marcas do naipe de Lacoste e HBO Max.
Como Rodrigo, da GR6, Dricka não titubeia na hora de dar o crédito pelo renovado interesse pelo funk. "Obrigada, Anitta, por abrir todas as portas internacionais (para nós)", ela disse em entrevista ao podcast PodPah. "Eu admiro o trabalho dela. A gente nunca pode dizer que quer ser igual à Anitta. Anitta só tem ela. Eu quero ser a Dricka, só que no mesmo patamar que ela."
No que depender de produtoras como Alana Leguth, as chances da jovem funkeira são altas. Sócia-diretora da Kondzilla, uma das mais emblemáticas produtoras do gênero do país — fundada por seu marido, Konrad Dantas —, Alana criou o projeto HERvolution, um selo dedicado a garimpar talentos entre as mulheres e promovê-las no universo do funk.