Com o sertanejo e poucos outros gêneros revezando-se no topo, artistas do pop-rock decidem militar no midstream, um mercado com características e possibilidades bem próprias
por_ Alexandre Matias • de_ São PauloO mesmo streaming que salvou a indústria fonográfica ajudou a criar uma superclasse de gêneros musicais no país que ocupam sempre o topo do mercado. Sertanejo, funk/rap (com muito menor projeção) e medalhões da MPB e do rock dos anos 80 e 90 dominam as cabeças das listas, enquanto uma nova geração de artistas que conseguiu se organizar só chega a resvalar o top 10, e eventualmente. A questão é que esta não é necessariamente sua meta principal. Eles são o chamado midstream, uma turma que aprendeu a explorar um caminho do meio cheio de possibilidades.
“O midstream cada vez mais se torna uma realidade no mercado brasileiro”, explica Guilherme Jesus Toledo, produtor musical e sócio do selo Risco, que revelou artistas como O Terno, Luiza Lian e Ana Frango Elétrico. “Ele é formado por artistas que possuem uma base fiel e crescente de fãs, mas que não são necessariamente gigantes e conhecidos no Brasil inteiro. O fato de sermos um país continental faz possível o artista ter um público considerável que vai aos shows, compra merchandising, acompanha, ouve no streaming mas que, ao mesmo tempo, não torna esse artista um megacase de números. Ainda assim, dá para fechar as contas e reinvestir na própria carreira.”
Quando Barreto cita a cena independente no final do século passado, é inevitável lembrar que o conceito de mainstream na música se estabeleceu depois que a indústria fonográfica se consolidou como tal, na virada dos anos 1970 para os 1980. Nesse período, gravadoras foram se firmando no mercado comprando outras gravadoras, criando grande concentração. Não por acaso é o período áureo do pop das massas, com nomes como Michael Jackson, Madonna, Prince, George Michael e Bruce Springsteen espalhando-se pelo planeta. Quem estava fora desse grande mercado era considerado independente. Ou, na corruptela em inglês, “indie”.
“O mainstream era muito caracterizado pela força popular, que passava por aparições nas grandes mídias, principalmente rádio e televisão. O streaming veio para mexer com tudo isso”, diz o guitarrista.
Ser um artista médio, evidentemente, não é nenhuma novidade. Como lembra Roberto Barreto, integrante de um grupo que é a cara do midstream brasileiro, o BaianaSystem, a origem do conceito é o antigo mercado indie do final dos anos 90/princípio dos 2000. Acontece que naquele momento as gravadoras estavam em crise, os meios de produção e distribuição mais baratos começavam a chegar a todos, e havia de fato uma lógica de produção totalmente independente com o objetivo de “chegar lá”. Agora, o midstream é uma categoria em si à qual muitos aspiram — sem ter a pressão de trabalhar para liderar o chart do Spotify.
NO BRASIL, SER ‘MÉDIO’ PARECE RUIM, PEJORATIVO: OU VOCÊ É O GIGANTE VIRAL DOS ÚLTIMOS TEMPOS OU, ENTÃO, É UM ARTESÃO.”
Guilherme Jesus Toledo, sócio do selo RiscoNO BRASIL, SER ‘MÉDIO’ PARECE RUIM, PEJORATIVO: OU VOCÊ É O GIGANTE VIRAL DOS ÚLTIMOS TEMPOS OU, ENTÃO, É UM ARTESÃO.”
Guilherme Jesus Toledo, sócio do selo Risco“Essa cena cresceu a partir disso da relação com a internet. E entendeu como atingir mais pessoas (através dela). Por isso cresceu mais do que o underground, que simplesmente se colocou como oposto ao mainstream”, descreve Barreto, que também é um dos idealizadores do festival baiano Radioca, nascido a partir de um programa de rádio de mesmo nome. “No Brasil, este crescimento está ligado aos festivais independentes, com muitos estados tendo uma cena muito forte. Isso possibilitou a circulação dos artistas. Se você pensasse antes em fazer um show em Belém ou em Fortaleza, dependia de já ter um público formado nessas cidades que justificasse os custos.”
A construção de redes de midstream e a lógica de cena, em que todos colaboram entre si, portanto, foram fundamentais para a consolidação do segmento. “Comparando com a realidade que a gente tinha há algumas décadas, existe hoje uma possibilidade de posicionamento de artistas, serviços e toda uma rede de profissionais ao redor da música que não está realmente ligada ao mercado mais mainstream”, emenda Ricardo Rodrigues, diretor da agência Let’s Gig, que representa artistas como Luedji Luna, Majur, FBC, Lucas Santtana, Rico Dalasam e Giovani Cidreira, entre outros. “O foco é no desenvolvimento próprio, autônomo, de independência frente às grandes estruturas mercadológicas, mantendo identidades e personalidades.”
“Tem artistas que, mesmo estando no midstream, podem ter um grande rendimento no fonograma e não fazer muito show, porque acabam conseguindo atingir um grande público nas redes sem vender muito ingresso”, diz Ricardo. “Então eles criam estratégias em cima disso: produção de conteúdo, atuando como influencer nas redes, trazendo marcas pra isso…”
Algo que, na opinião de Gui Jesus, do Risco, supõe um grande desafio. “Porque nem sempre conseguimos alcançar a meta de forma direta e calculada. No Brasil, ser ‘médio’ parece ruim, pejorativo: ou você é o gigante viral dos últimos tempos ou, então, é um artesão. O mercado precisa entender que o midstream é benéfico para todos: público, artista, empresário, até mesmo marcas que saibam que sua ação não atingirá milhões de pessoas, mas terá mais eficiência e tração.”
O FOCO É NO DESENVOLVIMENTO PRÓPRIO, AUTÔNOMO, DE INDEPENDÊNCIA FRENTE ÀS GRANDES ESTRUTURAS MERCADOLÓGICAS, MANTENDO IDENTIDADES E PERSONALIDADES.”
Ricardo Rodrigues, diretor da agência Let’s GigO FOCO É NO DESENVOLVIMENTO PRÓPRIO, AUTÔNOMO, DE INDEPENDÊNCIA FRENTE ÀS GRANDES ESTRUTURAS MERCADOLÓGICAS, MANTENDO IDENTIDADES E PERSONALIDADES.”
Ricardo Rodrigues, diretor da agência Let’s GigIsso porque o engajamento do público do midstream com seus artistas favoritos pode ser muito mais intenso e apaixonado. “Não é que o midstream queira ter um público menor, ele quer sim criar seu público real, que se identifique com o trabalho”, opina Ricardo, da Let’s Gig.
Se essa atitude trouxer rendimentos mais altos e o olhar do “sistema”, melhor: “Tem artistas (do midstream) que miram em públicos altos, grandes rendimentos e tudo mais, porque talvez acreditem que a mensagem da sua música possa chegar às grandes massas”, descreve o executivo.
Sempre na linha fina que separa mainstream e underground, outra característica dos artistas do midstream é que eles, diferentemente da maioria daqueles que têm grandes contratos com gravadoras enormes, quase sempre buscam se envolver mais com as decisões e conhecer detalhes de um mercado complexo como o da música. “(Eles entendem) esse novo mercado, inclusive o que diz respeito às arrecadações digitais, à criação autoral, à própria execução pública e suas relações com os órgãos como o Ecad e as distribuidoras digitais…”, enumera Roberto.
Todo esse envolvimento garante não só independência das grandes gravadoras, algo que era a marca do indie. No caso do midstream, a ordem é ter autonomia artística, conclui o guitarrista do BaianaSystem: “A autonomia artística é mais um conceito estético do que mercadológico. É quando o mercado permite a autonomia de um artista para gerir a sua obra em todos os sentidos.”•