Artistas paraenses explicam o que há por trás do magnetismo da cantora e compositora ganhadora do Troféu Tradições UBC 2022
por_ Alessandro Soler • de_ BelémDona Onete fincou a mão direita sobre o braço da cadeira Luís XV em que havia passado as duas horas anteriores. A esquerda ela apoiou em Fafá de Belém. E, de repente, se levantou. Atrás delas — e dos outros artistas que acabavam de participar de uma homenagem emotiva à "Rainha do Carimbó Chamegado", reunidos todos no palco do Theatro da Paz —, 1.100 pessoas aplaudiam de pé. O gesto da cantora e compositora de 83 anos, cuja artrose a obriga a cantar sentada, foi carregado de simbolismo. Onete parece mesmo ter ganhado nova estatura como representante da música paraense, à altura dos grandes do Brasil.
"Quem inventou o carimbó chamegado foi ela", disse Marcelino Santos, associado da UBC e membro da banda Sancari. "O carimbó é mais acelerado, mais forte. Ela o tornou mais suave e com letras sobre amor." Para Mestre Damasceno, compositor, poeta e fazedor de rimas marajoara, Onete, com quem ele já cantou e gravou várias vezes, trouxe oxigenação para o gênero: "Ela canta o pitiú (o cheiro forte do peixe, em 'No Meio do Pitiú', seu maior hit) e fica bonito. Esse vozeirão dela está levando o Pará para longe."
Outros símbolos ajudaram a tornar elétrica, catártica, aquela noite de 22 de junho em que o Troféu Tradições UBC 2022 foi entregue à professora aposentada que se reinventou na indústria musical passados os 70 anos de idade. Pela primeira vez, a criadora de carimbó fazia um show só dela na maior casa de ópera do Pará. Pela primeira vez também, recebia a reverência de tantos conterrâneos ao mesmo tempo: além de Fafá, nomes do carimbó, como Mestre Damasceno e banda Sancari, do pop-rock de sotaque amazônico, como Félix Robatto, Jaloo, Lucas Estrela e Aqno, e da música de concerto, como o maestro Luiz Pardal, se revezaram no sarau transmitido ao vivo pelo canal da UBC no YouTube.
Todos interpretaram canções dela — só algumas entre as mais de 300 letras e músicas acumuladas ao longo das décadas em que Dona Onete quase que literalmente guardou sua obra sob o colchão, enquanto dava aula em escola pública no interior do estado ou atuava como secretária de Cultura na cidade de Igarapé-Miri. Ela nunca esperou de verdade que um dia os holofotes se acendessem sobre si.
ISSO É QUE É EMPODERAMENTO. NÃO DÁ BOLA PARA FÓRMULAS OU MODELOS E CANTA A SUA VERDADE.”
Fafá de BelémISSO É QUE É EMPODERAMENTO. NÃO DÁ BOLA PARA FÓRMULAS OU MODELOS E CANTA A SUA VERDADE.”
Fafá de Belém"Às vezes ainda penso que é um sonho. Poder contar e cantar minhas coisas, minhas histórias, o que eu vi e vivi... Ainda tenho tanto o que dizer. Me sinto cheia de energia e agradecida por tudo e todos que me ajudaram a estar aqui. Mais feliz ainda me sinto porque não sou só eu: é a música paraense que chega lá, que está explodindo, vivendo a sua pororoca", ela disse.
Repartir os louros, terceirizar a alegria, são coisas suas. "Uma das grandes virtudes dela é a gratidão. Ela gera um reflexo tipo o banzeiro (agitação suave das águas do rio), cujas ondas vão se espalhando: gera uma oxigenação que termina voltando para ela, passa a despertar mais amor por ela e mais dedicação da parte dos que a cercam", afirmou Geraldinho Magalhães, seu empresário, produtor e amigo. "Trabalho com música há 35 anos e nunca vi alguém ser tão grata."
Gratidão e valentia. Unanimemente, os que participaram da homenagem pareciam ainda assombrados com a capacidade dela de se lançar ao desconhecido num universo tão difícil como a música — "Isso é que é empoderamento. Não dá bola para fórmulas ou modelos e canta a sua verdade", elogiou Fafá —, desafiando o teto de cristal imposto às mulheres e aos idosos: "Onete é totalmente fora dos padrões: mulher, mais velha, cabocla, do interior. Ela é um pacote completo, pura representatividade. Fico muito feliz por vê-la nesse lugar", celebrou o músico, compositor e produtor Félix Robatto.
Paris, Auckland, Nova York, Kuala Lumpur, Londres. Dona Onete já viajou para muitos cantos levando o carimbó. Mas um lugar com o qual ela tem uma relação mais do que especial não fica lá muito longe de Belém. "Já aconteceram coisas muito loucas comigo no Circo Voador (casa de shows no Rio de Janeiro)", ela contou. "Uma vez a Deborah Colker, uma querida, subiu no palco e começou a dançar de um jeito tão intenso que eu não sabia se continuava a cantar ou se ficava vigiando pra que ela não se enroscasse nas minhas pernas", riu. "Teve outro dia em que, quando eu vi, tinha um rapaz rastejando no palco e mordendo o dedão do meu pé."
O encanto que ela exerce sobre os jovens tem muito a ver com a atitude sossegada. "Eu não sou de beber e sempre disse aos meus alunos, quando era professora, que o rock era um ambiente com bebida e drogas. Hoje virei roqueira, toquei no Rock in Rio, estão me chamando de pop. Fico imaginando o que será que eles pensam, hoje em dia, quando me veem..."
Há algo em Dona Onete, no entanto, que transcende os adjetivos. "Ela tem alguma coisa, ou alguém, que a acompanha. Traz a força dos caruanas (antiga civilização indígena do Marajó, onde ela nasceu)", descreveu Mestre Lucas, líder da banda Sancari, peça fundamental na engrenagem que projetou a professora para todo o Brasil e o mundo.
Vizinho à casa dela no bairro boêmio da Pedreira, em Belém, o bar onde a Sancari costuma ensaiar um dia parou para ouvir um canto bonito vindo do outro lado da rua. "A gente quis saber quem era a dona daquela voz", lembrou Lucas. "Eles não acreditavam, diziam 'ela é de idade!'", riu-se Onete, "pensaram que era a voz de uma jovem."
A partir daquele dia, ela começou a cantar com eles, dando canjas no bar. Dali, o salto para o circuito dos festivais alternativos do Pará, como o Terruá, onde um superjovem Jaloo a viu pela primeira vez, "há coisa de 11 ou 12 anos", como ele calculou.
"Eu ainda era um espectador. Curtia aquela grande salada de artistas paraenses do festival, e de repente ela surgiu. As letras dela são simples, mas muito boas, muito bem feitas. Ela é apaixonante, muito carismática. Eu assisto ao (talent show de drag queens) 'RuPaul’s (Drag Race)' e sei o quanto carisma é importante", gargalhou Jaloo, hoje com 34 anos.
Como o garoto que ele era ao vê-la pela primeira vez, o público de Onete hoje é majoritariamente formado pela geração Z. "Ela tem uma coisa vovozinha, dá vontade de pôr a cabeça no colo dela e esperar um afago", continuou Jaloo. "Ela é uma força da natureza, é magnética", completou Aqno, nome em ascensão no pop amazônico, que lançou seu primeiro disco em 2021. "Também escrevi muitas coisas ao longo de anos sem a perspectiva imediata de lançá-las. Vê-la se reinventar assim, com tanta energia, é inspirador."
A evolução do espetáculo ao vivo, aliás, é um dos legados desta geração, tanto do lado dos artistas quanto das casas de shows, na visão de Maria Juçá. "Eu odeio playback, tu odeias playback, todos nós odiamos playback. Música é energia pura, é instinto, é bomba atômica, é energia que move. Tem que ser vivida intensamente, sem disfarce. Mostramos que é possível fazer música ao vivo, gastando um pouquinho mais e tendo um retorno muito maior."
É MARAVILHOSO A UBC PROPORCIONAR ESSA COROAÇÃO À NOSSA RAINHA.”
Lucas Estrela, músico e compositorÉ MARAVILHOSO A UBC PROPORCIONAR ESSA COROAÇÃO À NOSSA RAINHA.”
Lucas Estrela, músico e compositorIdentificação. Há quem veja aí o segredo para a simpatia instantânea que essa artista desperta em quem a vê sobre o palco. "A palavra que a gente usa para defini-la é identidade. Ela está ligada à identidade paraense, e sabe representá-la de modo inteligente, alcançando as pessoas. É autêntica", opinou Luiz Pardal, um dos principais nomes da música de concerto do Pará, multi-instrumentista, maestro, compositor de gêneros variados e de trilhas sonoras.
"É maravilhoso a UBC proporcionar essa coroação à nossa rainha", resumiu o músico e compositor Lucas Estrela. "Dona Onete é um exemplo vivo de que é possível realizar qualquer coisa. Ela não se queixa, não se senta e desanima; faz acontecer."
Do alto do palco do Theatro da Paz, enquanto recebia os aplausos finais, a professora, poeta, cantora e compositora driblava a dor e se mantinha em pé. Ela sorria, plena da coroação que recebia na sua terra. E, como de costume, compartilhava o mérito que lhe atribuíam. "Já não somos só folclore. Chegou a hora do brega, do carimbó, da guitarrada, do que é nosso ser valorizado. Ninguém mais vai segurar o Pará."•