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DAS COISAS DA VIDA

De volta à UBC com Roberto de Carvalho, Rita Lee completa 75 anos de vida neste mês de dezembro, consolidada como uma influenciadora fundamental para as novas gerações
Texto e fotos por_ Guilherme Samora de São Paulo

De volta à UBC com Roberto de Carvalho, Rita Lee completa 75 anos de vida neste mês de dezembro, consolidada como uma influenciadora fundamental para as novas gerações

Por Guilherme Samora, de São Paulo

Ouvir uma música de Rita Lee é como entrar em contato com segredos da vida desvendados, bem na sua frente, para seus ouvidos. Sentimentos complexos e temas íntimos são cantados de maneira tão natural que não tem outro jeito: Rita é, sem dúvidas, uma das maiores agentes de transformação da música. Atual que ela só, transformou e continua a transformar gerações com um olhar muito próprio, criando uma legião de fãs e seguidores que celebram os 75 anos de vida dela, neste próximo 31 de dezembro.

Com uma mistura de ritmos e um caldeirão de influências que faz jus à diversidade paulistana, a big mama do rock elevou o gênero a outro nível, ajudando a tirá-lo do underground, abrasileirando-o e fundindo-o ao pop de um jeito único. Santa Rita de Sampa fez o milagre da multiplicação do rock e, sobretudo, das roqueiras brasileiras, que surfaram suas ondas e desfilaram por avenidas abertas por ela.

De Pitty a Letrux, de Felipe Catto a Luisa Sonza, de Manu Gavassi a Duda Beat, não há cantora brasileira de gerações posteriores a Rita que tenha militado no pop rock e não a considere “a” influenciadora. A rebeldia e a naturalidade que transmite em suas letras, o fato de ter assumido as rédeas da própria carreira há várias décadas, sem dar bola para tendências de mercado, e a atitude pessoal da “mãe do rock brasileiro” deixaram marcas. “A Rita é muito mais que só uma lenda do rock. Eu acho que ela é uma das maiores artistas que nosso país já teve, em termos de potência criativa e feminina. É por isso que me emociona muito falar da Rita, e por isso que eu sou muito grata de ter esse exemplo que fala minha língua, em meu próprio país, uma brasileira que fez tudo isso, que brincou com a arte, de diversas formas, construindo um legado só por produzir, por vocação, né?”, resumiu Gavassi à edição de novembro da revista Rolling Stone, toda dedicada a Rita.

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Mas nem tudo foi fácil. Rita enfrentou barras pesadas logo no início de sua carreira, principalmente por dois fatores: ser uma mulher no mundo predominantemente masculino do rock e ousar defender a liberdade durante a ditadura militar. Foi presa em 1976, para servir de exemplo a outras como ela. Afinal, uma mulher livre e dona do seu nariz, cantando o que bem entendia, era um grande perigo para os militares.

Na época em que passou alguns dias presa e foi condenada a um ano de prisão domiciliar, ela estava grávida de Beto Lee, seu primeiro filho com Roberto de Carvalho, e teve a ajuda inesperada de outra grande da música brasileira.

“Fiquei grávida e fui presa. Foi um carma louco. A primeira vez que engravidei na vida fui presa inocentemente. Naquela época dos festivais da Record, Mutantes, Tropicalismo, Elis (Regina) passava pela gente virando a cara. Ela fez parte daquela passeata contra o uso da guitarra elétrica na música brasileira. A última pessoa que eu esperava que fosse me visitar na cadeia era a Elis. (Foi) quando o carcereiro falou ‘oh, ovelha negra, tem uma cantora famosa aí que está rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver’”, riu-se Rita, ao relembrar a história durante uma live com o cantor Ronnie Von em 2020.

AspasNÃO TENHO HORA PARA MORRER, POR ISSO SONHO”

Rita Lee
Metaverso

AspasNÃO TENHO HORA PARA MORRER, POR ISSO SONHO”

Rita Lee

Como expresso em documentos do regime militar, organizados no livro “Ditadura no Brasil e Censura nas Canções de Rita Lee”, da pesquisadora Norma Lima, a paulistana foi a criadora musical brasileira que mais sofreu com a tesoura dos censores. Farta documentação produzida no processo de cortes e vetos às suas letras atesta: Rita era vista como uma mulher perigosa por questionar os papéis sociais, comportamentais e políticos.

Um dos exemplos de marcação cerrada a Rita está em “Saúde”, disco de 1981 da dupla Lee & Carvalho. Eles compuseram 25 músicas para conseguirem que a censura liberasse oito. Ainda assim, com ressalvas. “Banho de Espuma”, hit indiscutível da série “canção erótico-biográfica” do casal, quase não foi gravada. Na primeira versão, batizada de “Afrodite”, a censura implicou com tudo, título e letra. Diziam os censores em documento oficial: “É transposta a barreira da conveniência, com um mergulho mais fundo no erotismo”. Rita, então, mudou a letra: trocou “em qualquer posição” por “com toda disposição”; “bolinando”, por “esfregando”; e o título foi de “Afrodite” para “Banho de Espuma”. Passou depois de três recursos. Várias outras – do “Saúde” e de tantos outros discos – não tiveram a mesma sorte. Permaneceram com o carimbo de vetado e acabaram nunca sendo gravadas.

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Elas querem é poder.

Chama a atenção que os militares a quisessem colocar no seu “lugar” como mulher. Espiritualizada, Rita me disse, certa vez, que esta é sua primeira encarnação como mulher na Terra.

“E, se tiver que voltar, que seja como mulher novamente”, resumiu.

Afinal de contas, como ela canta em “Cor Rosa Choque”, com a ironia e a irreverência que marcam boa parte de suas músicas, o “sexo frágil” não foge à luta. Na letra, Rita ainda usa e abusa do bom humor para demolir visões ultrapassadas. “Mulher é bicho esquisito/ todo mês sangra”, canta um pouco à frente, em um verso que, como ela lembra, deu trabalho para ser liberado pela censura.

Se, naquela música, Rita cantou a menstruação, pouco mais de 10 anos depois ela mexeu com outro tabu, a menopausa. Na canção “Menopower”, brinca com as palavras para empoderar as mulheres de meia idade que enfrentam com bravura a série de mudanças físicas e psicológicas que marcam essa fase da vida. Desafia, portanto, de novo, os papéis reservados pela sociedade a elas. “Menopower/ Pra quem foge às regras (...)/ Melancólicas/ Vocês são piegas”, sentencia.

O segredo para captar a empatia imediata de quem a ouve é simples: Rita escreve e canta sobre ela mesma, suas vivências, deixando claro seu olhar sobre o mundo e as coisas. Essa transparência cativa gerações em sequência, garantindo à cantora e compositora uma contínua renovação de público.

Metaverso
foto_Guilherme Samora

E, com a garotada que chega cada vez mais curiosa e ávida por Rita, um novo título: a padroeira das ovelhas negras. É justamente na música de 1975, do álbum “Fruto Proibido”, que tribos e gerações distintas encontram em Rita um conforto: tudo bem ser diferente.

Assim como “Ovelha Negra”, outras canções da artista parecem ter sido criadas para descrever momentos diferentes da vida de cada um de nós. É o caso de “Coisas da Vida” (1976), que, num trecho, diz assim: “Depois que eu envelhecer/ Ninguém precisa mais me dizer/ Como é estranho ser humano/ Nessas horas de partida.”

Acertou quem relaciona esta obra a um momento complicado em família. A artista contou que escreveu a letra e a música em poucos minutos, depois de receber o resultado de um exame de sua mãe, que fora diagnosticada com câncer. Mas, como terminar para baixo não é com Rita, logo ela avisa:

“Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho.”

Rita e Roberto

Rita e Roberto, juntos em seu sítio no interior de São Paulo

Aspas
Rita escreve e canta sobre ela mesma, suas vivências, deixando claro seu olhar sobre o mundo e as coisas.”

Rita Lee

RITA E ROBERTO, UNIÃO NA VIDA E NA ARTE

Mais do que uma parceria musical, a união de Rita e Roberto transcende títulos e barreiras. O encontro de vidas resultou em uma bela história de amor marcada por clássicos da música brasileira, além de três filhos: Beto, João e Antonio.

Das composições, “Disco Voador” foi a primeira a ser gravada, no álbum “Babilônia”, de 1978. Mas foi no ano seguinte que a dupla invadiu as vitrolas, rádios e TVs do país todo com o disco batizado apenas de “Rita Lee”. E uma das maiores responsáveis por isso é “Mania de Você”. Poucas músicas entregam tanta intimidade e tanta verdade. A partir dali eles passam a dividir com o público seu amor, seu tesão. E, como já disse Rita, as pessoas gostaram de dar uma espiada.

Não só o público se apaixonou por ela. Depois de ouvir o disco de 1979, João Gilberto a convidou para cantar com ele. Foi quando disse a célebre frase “Ritinha, você pode achar que é roqueira, mas sua voz é de bossa-noveira”.

João, de quem Roberto sempre foi fã, ainda presenteou o casal com sua rara aparição na canção “Brazil com S”, que a dupla lançou em 1982 – depois de já ter entregue à música o megahit “Lança Perfume”. Só mais um entre outras colaborações imbatíveis dos dois, e que incluem ainda “Baila Comigo”, “Saúde”, “Desculpe o Auê”, “On the Rocks”, “Vírus do Amor”, “Pega Rapaz”, “Amor e Sexo”, “Reza”...

Os dois estão de volta à UBC há alguns meses, depois de um hiato fora – um hiato breve, se for considerada a relação de décadas que cultivaram com a associação.

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VEJA MAIS:
O clipe do single “Change”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, lançado ano passado
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